Sokurov e os fantasmas da história

CONTO DE FADAS

A tecnologia deepfake, que consiste em manipular digitalmente imagens de arquivo para fazer pessoas dizerem e fazerem aquilo que nunca disseram ou fizeram, ganha talvez seu primeiro longa-metragem integral em Conto de Fadas (Skazka), de Alexander Sokurov. O mestre russo criou uma fantasia-pesadelo em que governantes decisivos do século XX vagueiam a passos lentos e conversam num purgatório cenografado por gravuras igualmente manipuladas.

A fascinação de Sokurov pela figura de grandes líderes e ditadores já o levou a criar sobre Hitler (Moloch), Hiroíto (O Sol), Lenin (Taurus), afora todos os encontrados em Arca Russa. Em Conto de Fadas, as “estrelas” são Hitler, Stálin, Mussolini e Churchill, todos revividos (melhor seria dizer remortos) como fantasmas da história a dialogar sobre o socialismo, o nazismo, o desejo de poder e assuntos bem mais corriqueiros. Balbuciando cada um na sua língua, chamam-se de “irmãos”, criticam-se mutuamente e comentam os cheiros uns dos outros enquanto esperam pela abertura de uma imensa porta atrás da qual estariam Deus e o paraíso.

Em dado momento, Stálin morto reclama por estar com fome e ainda assim ganhar peso no caixão. Hitler instiga Cristo morto a levantar-se e trabalhar. Mussolini contempla o seu próprio cadáver e o da mulher. Napoleão também dá as caras, en passant. Nos cenários góticos e oníricos formados por ruínas, como num conto de fadas lúgubre, eles aparecem multiplicados em várias épocas de suas vidas. No último ato, interagem com um mar de povo ondulante que sugere telas de Hieronymus Bosch.

Sokurov é um explorador das possibilidades da imagem em termos de textura e flexibilidade. Conto de Fadas é, sem dúvida, um passo além nessa aventura. Resulta de um trabalho extensivo de adulteração de arquivos realizado por uma equipe de dez pessoas. No entanto, após o atrativo desse recurso se esgotar, o filme se estende de maneira sorumbática e extremamente cifrada, com eventuais pitadas de humor. Vale mais como experimento do que como reflexão sobre os destinos pretéritos da Europa.

 

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