Sátira aos excessos da contemporaneidade

TESTAMENTO

Aos 82 anos, Denys Arcand lançou Testamento (Testament), que pode vir a ser, como sugere o título, o seu último filme. E arriscou-se a ficar com a pecha de reacionário. O fato é que o realizador de obras recheadas de crítica social, como O Declínio do Império Americano, Jesus de Montreal e Invasões Bárbaras, resolveu dessa vez chutar o pau da barraca, como se dizia antigamente. Abriu mão do politicamente correto e saiu atirando em várias direções.

Não há, porém, como não ver em Jean-Michel Bouchard, o velho arquivista e escritor semi-aposentado vivido por Rémy Girard, o alterego de um cineasta enfadado com os excessos da consciência contemporânea. Jean-Michel vive num lar de idosos em Montreal, cuja diretora, Suzanne (Sophie Lorrain), se gaba de prover todas as opções de alimentação correta que há no mundo. Ela atende a todos os requisitos, inclusive o tratamento neutro para um hóspede que, já na terceira idade, resolveu se assumir como não binário.

Suzanne não se dá conta, porém, que o vistoso mural do século XIX que cobre uma parede do salão principal, retratando uma cena do colonizador Jacques Cartier em contato com indígenas, representa o prenúncio de um genocídio. Eis que numa bela tarde um grupo de manifestantes se instala em frente ao estabelecimento e passa a exigir a destruição do painel. Não são indígenas, mas os chamados wokes, pessoas brancas que tomam para si a defesa de outros grupos étnicos. Os do filme colocam duas ou três penas na cabeça e se dizem representantes dos povos originários.

Estátuas têm sido derrubadas em nome da decolonização, como a de Borba Gato em São Paulo. À esquerda e à direita, ícones têm sido vandalizados por quem discorda deles. Em museus europeus, ativistas jogam tinta em quadros famosos para chamar atenção para a proteção do meio-ambiente. Ou seja, as obras de arte se tornaram bodes expiatórios de disputas políticas.

Testamento mostra isso e outras tendências contemporâneas com fortes tonalidades satíricas, caricaturais mesmo. Diante da morte súbita de um homem saudável, sua mulher esbraveja sobre todos os cuidados de saúde que tomaram a vida inteira em vão. A biblioteca do abrigo é convertida em sala de games. Os prêmios literários são dominados por novas pautas políticas e autoras burlescas. A imprensa é leviana e sensacionalista. As autoridades da área cultural são indolentes, oportunistas e contraditórias quando se trata de tirar o corpo fora das responsabilidades (com direito a uma breve participação do teatrólogo Robert Lepage no papel do subministro da Cultura).

Arcand, que tem um filho transgênero, nega estar se opondo às causas progressistas. “Estou tentando descrever a sociedade ao meu redor”. Essa descrição, claro, não é destituída de um ponto de vista: o dele, de Jean-Michel e de Suzanne, pessoas brancas, razoavelmente bem situadas e nostálgicas de um tempo em que as coisas eram mais simples: homens eram homens, mulheres eram mulheres e obras de arte eram obras de arte. Em seus frequentes solilóquios Jean-Michel demonstra inadequação ao atual estado de coisas, com manifestações a toda hora (o filme inclui duas com sentidos contrários) e o fim da privacidade em benefício de uma ideia superficial de comunidade.

Enquanto assistia a Testamento, eu me questionava sobre o sentido dessa comédia franco-atiradora, às vezes próxima da grosseria. Os diálogos ostensivamente inteligentes e a mordacidade do humor  me agradavam, assim como o subplot romântico que gradativamente toma corpo entre Jean-Michel e Suzanne. Ao mesmo tempo, a razão e o protagonismo ficando com os “resistentes” à contemporaneidade me colocava numa berlinda íntima. O epílogo futurista, com a alusão ao avanço chinês, afirmava que esse tempo também vai passar. Sabe-se lá… É só o testamento do velho Arcand.

>> Testamento está nos cinemas. 

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