A maioria em xeque, de Ibsen ao Brasil

UM JULGAMENTO – DEPOIS DE O INIMIGO DO POVO
“A verdade acabou”, diz Wagner Moura na primeira fala de Um Julgamento – Depois de O Inimigo do Povo. Ele está sentado diante da plateia no papel de Thomas Stockman, personagem central da peça O Inimigo do Povo (1882), do norueguês Henrik Ibsen. Mas o que vemos não é mais Ibsen, e sim uma espécie de continuação centrada no Brasil dos dias atuais. Thomas cita fake news, pessoas criadas por inteligência artificial, cancelamentos, essas coisas com que lidamos no vácuo ético de hoje em dia.

No texto criado por Christiane Jatahy, Lucas Paraizo e Wagner Moura, Thomas Stockman está sendo julgado por – como na peça de Ibsen – ter tentado fechar uma estação balneária que tinha suas águas contaminadas por substâncias tóxicas. Seu irmão, prefeito da pequena cidade, o acusava de ser inimigo do povo e dizia defender a sobrevivência econômica da comunidade. As semelhanças com os argumentos do governo Bolsonaro durante a pandemia não são mera coincidência.

O embate entre os dois irmãos no tribunal, com um júri sorteado na plateia, chega às vias de fato e atinge seu ápice político quando Thomas precisa se explicar por ter criticado a lógica da maioria. Esse é um debate que vem de Ibsen e se adequa perfeitamente à atualidade. Seremos obrigados a seguir a manada quando a maioria faz as piores e menos democráticas opções? Qual o papel de uma vanguarda progressista na defesa real da democracia, da ciência e do meio-ambiente?

Muito do que Thomas diz na peça vem certamente de Wagner, um dos nossos artistas mais politicamente conscientes. O engajamento do ator no espírito do personagem é visível. E seu desempenho é não menos que brilhante na forma como “quebra” o texto e reúne os cacos numa fala que sugere o improviso e a paixão. Danilo Grangheia e Julia Bernat, como o irmão e a filha de Thomas, não ficam atrás em técnica e emoção.

A encenação de Christiane Jatahy tem a marca da ousadia e do risco cênico que lhe são característicos. O elenco atua com câmeras em cena, entrevista online, “provas” apresentadas num telão, áudios reproduzidos em celular e o espaço do palco estendido para fora do Teatro II do CCBB-Rio. Cria-se uma atmosfera algo tensa, em que eventuais defeitos técnicos, produzidos ou acidentais, colaboram para a inquietação do julgamento.

Quanto ao veredicto do júri, trazido ao palco no final do espetáculo, ficou-me uma dúvida: até que ponto a imagem e o protagonismo absoluto de Wagner Moura contribuem para a decisão dos jurados de declará-lo inimigo ou amigo do povo? Como seria se Wagner fizesse o papel do irmão de direita? Ou se nenhum dos dois contendores tivesse tal qualidade de estrela?

A proximidade do lançamento de O Agente Secreto e todo o buzz criado em torno do ator revestem essa montagem de uma aura especial. Um evento artístico e político em igual medida, a que muito mais gente mereceria assistir para além dessas microtemporadas nos CCBBs.

 

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