Os argentinos e nós

Uma das boas notícias da noite do Oscar foi a vitória inesperada de O Segredo dos seus Olhos na categoria de melhor filme em língua estrangeira. Surpresa não pela qualidade do filme, que é inequívoca, mas pelo franco favoritismo de A Fita Branca e O Profeta. Só sei que alguma coisa me alertava para uma possível façanha argentina, pois o coloquei em segundo lugar na bolsa de palpites que faço com amigos.

 Nem os críticos argentinos que habitualmente torcem o nariz para os filmes de Juan José Campanella – los anticampanellistas – resistiram ao charme e à verve narrativa de O Segredo. A maneira envolvente como ele coloca vários gêneros para conversar e chega a níveis relativamente profundos nos aspectos humano e político, sem jamais perder o pulso da plateia, é realmente admirável. São duas histórias de amor paralelas, atravessadas por uma suspeita hitchcockiana, pelo humor (às vezes negro) e pela observação política que não emperra o fluxo do argumento central.

 Campanella pode não ser o “auteur” que certos críticos exigem, mas deixa suas marcas bem claras. Seja no personagem cômico, sempre presente em seus filmes; seja na engenhosa combinação do doce e do amargo, da nostalgia portenha com a teimosia em busca da felicidade; ou ainda na presença iluminada do sutilíssimo Ricardo Darín, sem o qual não dá para imaginar o que seria do cinema de Campanella. O Segredo é um primor de ritmo e traz uma das cenas mais virtuosísticas do cinema recente, que é o plano-sequência do estádio de futebol, arrebatador como resumo do tema da paixão.

Eu imaginava que a Academia poderia se emocionar com tudo isso – e fazer vista grossa para o que mais me incomoda no filme, que é o bloco final. Ali a narrativa de Campanella fica didática, com aqueles horríveis “ecos” de lembrança, e inverossímil no desfecho do viúvo apaixonado.          

De qualquer forma, é muito mais cinema do que tudo o que o Brasil colocou no páreo pelo Oscar este ano. A Folha de São Paulo fez uma matéria sobre isso na semana passada. Minhas declarações ali resumidas requerem um pouco mais de espaço.

De fato, acho que o cinema brasileiro de ficção está num impasse em relação ao mercado internacional. De um lado, temos filmes ambiciosos do ponto de vista autoral, chegados ao experimental, mas capazes de se comunicarem apenas com plateias mínimas, especialmente motivadas. De outro, estão os filmes ultracomerciais, pautados pelo gosto de um público acostumado com a televisão, e que não têm estatura para competir longe do front doméstico.

Não há muito entre esses dois extremos. Poucos são os realizadores que investem no caminho do meio, tentando conciliar invenção e comunicação, cor local e universalidade, ousadia e artesanato. Walter Salles, Fernando Meirelles, Karim Ainöuz, Murilo Salles e Walter Lima Jr. estão entre eles. Já Beto Brant é exemplo de um cineasta que trocou a via da universalidade (culminante em O Invasor) por exercícios mais radicais e de difícil circulação.

Não me venham falar de Tropa de Elite em Berlim. Aquele foi um evento misterioso, inexplicável, que não repercutiu muito além dos limites da própria Berlinale. O Oscar de Campanella, isso sim, tornou ainda mais evidente o fosso entre os cinemas de ficção brasileiro e argentino em matéria de alcance além-fronteiras. Nossa mania de autossuficiência talvez cochiche que não precisamos do mercado estrangeiro. Mas na hora de competir, sempre acabamos nos lamentando ou apontando “culpas”. A verdade é que nosso cinema participa apenas marginalmente da cena internacional. Talvez por uma simples razão: o que não é produzido para ser universal não pode ser vendido depois como tal.        

12 comentários sobre “Os argentinos e nós

  1. Pingback: Meus filmes do ano « …rastros de carmattos

  2. Custei a me manifestar porque minha opinião do filme já me rendeu mais tapas do que beijos, mas agora, apoiado por outras duas mensagens discordantes da excelência do filme do Campanella, reitero o que escrevi no http://www.criticos.com.br Vejo o filme atirando em todas as direções, buscando (e atingindo medida de público, Oscars e Goyas) “o segredo do sucesso” – mas, ao meu ver, através de uma mistureba mal resolvida de gêneros: drama policial com momentos cômicos(?) ao lado de suspense romântico (fica com a moça ou não fica?) mais importante do que o suspense criminal do “quem matou” cujo final apenas enterrava de vez o que veio antes. Se premiassem “Leonera” do Pablo Trapero seria uma maravilha que o Oscar jamais fará. Aliás, nosso prêmio de atriz em Cannes no filme do Waltinho não chegou a ser injusto para a atriz brasileira, mas a atriz de “Leonera” estava excepcional, se fosse a premiada me pareceria mais pertinente.

      • Foi apenas uma menção para dizer (indiretamente) que não considero o cinema argentino de ficção superestimado: há filmes com resultados interessantes. E aproveito para dar minha opinião sobre “É proibido Fumar”: se esta foi a melhor ficção brasileira de 2009… então o cinema argentino vai bem melhor do que o nosso nesta área, que, como estamos vendo, andou bem mal das pernas ultimamente.

  3. Carlinhos, na boa, concordo com o Rodrigo. Vi o tam filme, achei xexelento, tem momentos constrangedores – desfecho é pavoroso. Sinceramente, superestimam o cinema argentino. Também não estou nem aí para o Oscar. Pra mim, é só vaidade – aliás, o Campanella deve ter ganhado porque a rapaziada da Academia conhece ele de “House”. É bom (por causa dos dividendos financeiros) pra quem ganha e olhe lá. O cimema brasileiro tem é que conquistar o seu mercado primeiro. Melhor ainda: quem gosta de mercado é “O Globo”.

    • Pô, Zé, a gente não gosta de mercado, mas o cinema precisa dele, de algum mercado. Até os teus filmes precisam de um mercado, nem que seja diminuto, afetivo etc. As minhas ponderações sobre o cinema brasileiro diziam respeito apenas ao espectador estrangeiro. Quanto ao filme do Campanella, ficamos na discordância mesmo. Mas concordamos quanto ao desfecho, que é bem ruim.

  4. Paulo, há uma polissemia na famosa assertiva do Tolstoi que nem todo mundo leva em conta. Ele diz que “pintando sua aldeia, pintará o mundo” e ao mesmo tempo indica que é preciso ser universal ao pintar a sua aldeia. Se alguém pinta a sua aldeia de uma forma cifrada que nem mesmo a maioria dos seus conterrâneos é capaz de compreender, estará longe de ser universal. Os temas, as emoções etc de um lugar podem ser compreendidos em qualquer outro lugar se estiverem mostrados através daquilo que os liga aos temas e às emoções de qualquer outro lugar. Eis o desafio. Ou continuo errado?

  5. Carlos,

    Perfeito. Só fiquei um pouco intrigado com “o que não é produzido para ser universal não pode ser vendido depois como tal”. Como assim? E a perspectiva tolstoica do local/universal?

  6. Uma pena esse filme, tosco mesmo, ter sido tão bem recebido no Brasil. Ano passado tivemos, só para ficar num exemplo, É proibido fumar, filme muito superior ao do pseudo-artístico Campanella.

    • “È Proibido Fumar” é de fato uma maravilha de filme, mas o argentino (tosco???? – imagino o que seja refinado pra você) não foi bem recebido “no Brasil”, mas no mundo inteiro. Ganhou vários Goyas na Espanha e um Oscar. Vamos cair na real, Rodrigo.

  7. Sim, eco ao Budismo: “O caminho do meio é o desafio”. Por um lado, blockbusters desenlatados da televisão, no outro extremo, experiências atrofiadas no circuito antes mesmo de existirem. E jamais terão espaço na exibição. Raros são os autores, lembrados – muito bem – por você, que têm propostas a la “O ano em que meus pais saíram de férias” – o último grande exemplo pra mim. No fundo, acho que todos queremos emplacar um “O Segredo dos Seus Olhos”: ótimo de bilheteria e ótimo filme – com história, proposta, engajamento político e etc -, nos meus sonhos, pergunto quem é que tem a patente. Se eu pudesse dar uma espiadinha na fórmula… não me afundaria em pesadelos…

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