Documentários, por exemplo

(Texto publicado na coletânea de DVDs Bahia, 100 Anos de Cinema)

Carybé: “Bahia”, 1971 (MAM Salvador)

Dadas as limitações técnicas, jurídicas, de preservação e de prazo que se impuseram à composição desse recorte dos 100 anos do cinema baiano, os filmes aqui reunidos cobrem um período (1954 a 2008) na verdade pouco maior que 50 anos. Trata-se de uma fase que corresponde à modernização e afirmação de identidade do cinema brasileiro. Nesse processo, o documentário teve papel importante também na Bahia – o que se reflete na presença significativa de 12 filmes com características documentais evidentes entre os 30 títulos incorporados.

Com sua exposição frontal (e teatral) da capoeira dos Mestres Waldemar e Bimba, Vadiação representa o documentário tradicional, de feições didáticas, mas inspiradoras para quem viria depois. Barravento, aliás, foi um dos vários filmes que beberiam nas águas dos documentários sobre pesca realizados pelo mesmo Alexandre Robatto Filho, tido como o primeiro grande cineasta local.

O berço baiano do Cinema Novo foi construído também pela visão fluente e poética que Luiz Paulino dos Santos nos deu do ancoradouro do Mercado Modelo em fins dos anos 1950. Um Dia na Rampa, filme que contou com a colaboração de Glauber Rocha, cria uma coreografia conjugando o trabalho dos homens e o movimento dos barcos num cenário extremamente sugestivo. É um desses filmes que estão a um passo de exalar o cheiro forte de Salvador e ajudaram a criar uma certa imagem da cidade.

Tomem-se o curta O Capeta Carybé, de Agnaldo “Siri” Azevedo, e o longa Samba Riachão, de Jorge Alfredo, para melhor entender essa formulação da Bahia através do cinema. Os perfis desses dois artistas carregam, cada um a sua maneira, as cores, as sinestesias todas e uma maneira de estar no mundo que, sem medo dos estereótipos, fixou-se como uma ideia de baianidade. Não mais a Bahia coletiva da capoeira e dos portuários, mas a do indivíduo peculiar que – mesmo vindo de fora, como o argentino Carybé – acaba personificando traços da terra.  

O mito do baiano bem sucedido que retorna à terrinha, cristalizado na Tieta de Jorge Amado, foi revisitado por Orlando Senna no seu Diamante Bruto, história da volta de um ator famoso a Lençóis. Esse filme foi um dos marcos da miscigenação entre documentário e ficção que germinou no cinema brasileiro dos anos 70, no rastro de Iracema, uma Transa Amazônica, que Senna codirigiu com Jorge Bodanzky em 1974.

Numa vertente mais etnográfica, estimulada pela Caravana Farkas, situam-se os filmes de Guido Araújo (A Morte das Velas do Recôncavo), Olney São Paulo (Sob o Ditame de Rude Almajesto) e mesmo o “Siri” de Adeus, Rodelas. Perda e permanência jogam dialeticamente nesses filmes, que tratam das vicissitudes do clima e do progresso quando afetam a paisagem do sertão e do litoral baianos.   

Por fim, dois documentários dessa coletânea assumem caráter de reflexividade, tematizando o próprio cinema da Bahia. O Guarani faz um inventário da cinefilia e do pensamento cinematográfico em torno da mítica sala da Praça Castro Alves. Na Bahia Ninguém Fica em Pé, integrante do movimento superoitista, flagra uma discussão antológica, porque bem-humorada, sobre vida nada fácil dos cineastas baianos na virada dos anos 80.     

Outros tantos documentários mereceriam lugar nesse conjunto de filmes, fossem eles de produção local ou frutos do interesse de documentaristas vindos de fora. Desde que a Bahia faz cinema, é num balanço fértil entre realidade e imaginação que vem temperando a sua imagem. 

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s