Uma família brasileira

Há documentários que se equilibram numa linha tênue entre a adesão simpática a seus personagens e a exploração de seus traços mais pitorescos. Eduardo Coutinho é mestre em evitar a ultrapassagem dessa linha. O risco está bastante presente em Família Braz: Dois Tempos, filme com que Arthur Fontes e Dorrit Harazim venceram a competição nacional do último É Tudo Verdade. Conheça o site do filme

Arthur e Dorrit retornaram 10 anos depois às pessoas que documentaram em Família Braz como parte da série Seis Histórias Brasileiras, produzida pela Videofilmes. No ano de 2000, eles queriam mostrar um grupo exemplar de classe média baixa de periferia que não se encaixasse nos estereótipos de exclusão, criminalidade e tragédia. Os Braz, moradores do bairro de Brasilândia, periferia de São Paulo, eram o protótipo da família digna e humilde, mas a que não faltavam metas e ambições. Além do mais, eram simpáticos a não mais poder. O sobrenome e o nome do bairro não mentiam – eles se pareciam com uma ideia média de Brasil.

Dez anos depois vamos encontrá-los com a vida melhorada. Não na medida de suas esperanças, mas ainda assim bafejada pelo sopro da ascensão social. O progresso entre eles é medido pelo número de carros na garagem (de um para quatro), as casas próprias ou a expansão dos puxadinhos, os cruzeiros de férias por águas nacionais e os novos hábitos adquiridos, como o consumo de comida japonesa e as idas a espetáculos teatrais. O carisma de “Seu” Toninho, Dona Maria, seus quatro filhos e respectivos genros e noras encanta a plateia. Eles falam sem timidez nem censura sobre suas questões pessoais e profissionais, seus sonhos e limitações. Não há como não admirá-los.

Ainda assim, me pergunto se o filme não os expõe ao mostrá-los cultuando uma ênfase exagerada no consumo e uma relação superficial e ingênua com o mundo da cultura e do bem-viver. Em vários momentos, a plateia de uma pré-estreia culta ria de algumas falas, traindo nesse riso uma consciência de diferença. O efeito cômico de um encanador humilde descrevendo seu deslumbramento com o musical Miss Saigon é algo que me deixa em cima daquela linha tênue entre a simpatia e a docexplotiation. Uma das cenas recuperadas do filme de 2000, em preto e branco, vem reiterar a pouca solidez das concepções do jovem Anderson, apresentado como “o intelectual da família”, ao falar de Platão, Aristóteles e Freud.

Não quero com isso negar os méritos desse retrato de família. Ver gente que personifica a ambição honesta e a simplicidade sem recalques é algo reconfortante – e relativamente raro no documentarismo brasileiro. Mas tampouco quero me calar sobre os dilemas que o filme me colocou. Entre construir uma imagem simpática dos personagens e desconstruir a visão que eles têm de si mesmos, a parede é muito fina, e este doc chega muito perto de rompê-la.

Outra anotação que não resisto em fazer é sobre o contexto de ascensão social dos Braz e de tantas outras famílias como eles. Nada disso é mencionado no filme, e os diretores se apressam a negar, mas a nova realidade econômica do governo Lula é a grande protagonista oculta de oito daqueles 10 anos compreendidos entre os dois filmes e os dois tempos da Família Braz.

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