Há muito tempo Ricardo Miranda nos devia a direção de um segundo longa-metragem, depois de Assim na Tela como no Céu, do longínquo 1991. Um dos mestres da montagem no Brasil e diretor de curtas e médias, ele sonhava com um filme baseado em Flaubert desde o início dos anos 1980. Como qualquer mortal, saíra perturbado da leitura do conto Quidquid Volueris – Estudos Psicológicos, escrito quando o futuro autor de Madame Bovary tinha apenas 16 anos.
O conto é um misto de relato de um amor obsessivo, fantasia zoológica e história de um crime hediondo. A origem dos acontecimentos remonta ao Brasil, que em 1837 ainda nutria a imaginação de cientistas loucos e escritores ambiciosos. Foi numa fazenda brasileira, portanto, que um dos personagens realizou uma experiência genética inusitada, que vai repercutir mais tarde nos salões de Paris. Djalioh, que dá nome ao filme de Ricardo Miranda, é o personagem monstruoso que não consegue controlar seus instintos diante de uma paixão não concretizada.
Para finalmente realizar seu intento, Ricardo trocou o projeto realista do passado por uma abordagem “de invenção”. Djalioh estreou quinta-feira passada na Mostra Internacional de Filmes da Bahia. O público de Salvador encontrou um trabalho que transita entre a leitura dramatizada e o ensaio de representação metafórica. O elenco reveza-se entre personagens e narradores de si mesmos, enquanto Helena Ignez faz um Flaubert eventual e se destaca pela segurança da interpretação. Notam-se ecos do estilo hierático de Jean-Marie Straub e da experiência narrativa de Buñuel em Esse Obscuro Objeto do Desejo, já que a personagem Adèle é dividida entre duas atrizes.
Capturar o amálgama de erotismo, bestialidade, horror e crítica social do conto de Flaubert não é tarefa das mais simples. Ricardo toma suas inciativas: enfatiza os pés dos atores e os figurinos translúcidos das mulheres, além de inserir um livro de desenhos de pênis fantásticos. Os macacos do zoológico também têm participação especial, não fossem macacos os verdadeiros protagonistas do espetáculo. Mas a fidelidade livre de Djalioh toma por vezes caminhos tortuosos. Promove deslocamentos brutais em relação ao original, ao mesmo tempo que tenta reescrever a essência do conto em imagens. A opção de indiferenciar os tempos e as vozes, bem como espalhar tempos mortos por um filme já curto, traz o risco de obscurecer e esvaziar o material literário, em vez de iluminar sua complexidade. Há também uma certa indecisão na direção de atores entre assumir ou não a ideia de não interpretar, o que se agrava com a insuficiência das duas jovens atrizes para compor o tom irônico e ambíguo de algumas declamações.
Como o filme não contempla os cenários parisienses, é nos ambientes luxuriantes da serra e da floresta que o selvagem se forja e finalmente se manifesta. Ali as imagens fotografadas por Antonio Luiz Mendes são capazes de plasmar uma forte sensação de tropicalidade exacerbada. A câmera flui como um líquido em torno do elenco, nisso residindo uma interessante coerência com o texto de Flaubert. E um dos maiores atrativos de Djalioh.
