Na competição pelos Troféus Andorinha de montagem, aqui no Cineport, tínhamos quatro opções bem marcantes e distintas de uso do conceito de edição. No campo da ficção, disputavam o brasileiro Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo e o português Filme do Desassossego (não confunda com o nosso Desassossego – Filme das Maravilhas). O candidato português leva à tela o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, assinado pelo seu heterônimo Bernardo Soares, um suposto guarda-livros que gosta de inventar sonhos e criar teorias sobre eles. O filme do veterano e ousado João Botelho embarca nas entrelinhas da ficção e de uma suposta realidade lisboeta, projeto de pura invenção.
O ator principal é coxo. Concorria a melhor ator, mas perdeu de longe para Wagner Moura. Catarina Wallenstein, a melhor atriz coadjuvante por Um Amor de Perdição (veja post anterior), sidera o espectador na performance da “Educadora Sentimental”, um plano único com a lente se aproximando vagarosamente de sua boca indescritível. A montagem de João Braz procura articular os vários níveis narrativos, que incluem declamação, instalações visuais, delírios dos personagens. Mas o júri compreendeu que essas virtudes se devem mais ao roteiro que propriamente à edição, ao passo que a montagem de Karen Harley no filme de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes tem uma função mais constitutiva. Karen é praticamente uma co-autora de Viajo…, filme que se realiza como puro objeto de montagem poética a partir de um material não destinado originalmente a ele. Por isso ganhou o Andorinha.
Entre os documentários, nosso candidato para montagem era o trabalho de Raphael Alvarez em Dzi Croquettes. Eis um exemplo esfuziante de engendramento de materiais de arquivo e depoimentos para criar um organismo vivo, não museológico. Mas não resistimos ao impacto, num sentido bem contrário, do português 48, dirigido e montado por Susana Sousa Dias. Temos aqui uma espécie de Shoah do salazarismo, 48 anos em que Portugal esteve imerso em trevas totalitárias. Homens e mulheres recordam perseguições, prisões e torturas sofridas na própria carne, mas deles se ouvem apenas as vozes e se veem somente seus retratos tirados na época pelos agentes da repressão. Essa opção radical amplifica a dramaticidade dos relatos, deixando que o áudio maduro de hoje ecoe nos rostos assustados de ontem, traumatizados pelo sofrimento, nas expressões progressivamente destituídas de esperança e brilho. O efeito emocional é poderoso.
A duração de exposicão das fotos, assim como o tempo de entrada e saída dos fragmentos de relatos sonoros fazem de 48 uma obra-prima da montagem minimalista de som e imagem. Resultam numa sobriedade completamente adequada a mostrar o indizível. Diante do filme, tem-se a impressão de uma obra perfeita e emocionante, à qual o menor acréscimo levaria tudo à ruína. E foi assim que o Andorinha voou para os lados da Susana.
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Grande Carlos Alberto Mattos! Muito generoso de sua parte falar disso. Geralmente os premios sao dados, e nada de comentarios, justificativas, duvidas.
parabens, pra variar
Valeu, Mauro. Se tivesse tempo, teria comentado todos os outros prêmios.