Vou publicar aqui pequenos comentários sobre os filmes vistos no festival. Voltem diariamente para conferir os novos textos a partir do topo. E comentem à vontade.
INVADINDO BERGMAN
Vão dizer que eu sou chato, mas não vi muita graça nesse Trespassing Bergman. Lembrar algumas poucas cenas de filmes e bastidores do mestre em meio a elogios rasgados de outros cineastas não é exatamente uma contribuição significativa ao conhecimento de Bergman e sua obra. Michael Haneke, Alejandro González Iñarritu, Tomas Alfredson, John Landis e Claire Denis visitam (não juntos) a casa da ilha de Farö e literalmente fuxicam as estantes e os cômodos da casa sem que nada de produtivo aparentemente resulte da situação. A cena em que Claire Denis alega estar passando mal e se afasta em direção a um copo d’água já previamente colocado no seu caminho diz tudo da artificialidade reinante.
Além desses, dão depoimentos fora dali Martin Scorsese, Francis Coppola, Zhang Yimou, Ridley Scott, Woody Allen, Ang Lee, Wes Anderson e Takeshi Kitano, entre outros. Robert De Niro aparece uns 20 anos mais moço, dando margem à impressão de que esse filme apenas reuniu falas de tributo a Bergman em épocas diferentes. Em boa parte do tempo, o gênio sueco funciona mais como um pretexto para os admiradores dizerem generalidades sobre a vida, a morte e o cinema. Mas, mesmo como inspiração, o resultado ficou aquém do que se espera de mais um filme sobre Bergman.
A reter apenas a especulação de Coppola quanto a uma suposta influência de Goethe sobre Bergman, as falas sempre instigantes e bem-humoradas de Scorsese e, sobretudo, a participação iconoclasta de Lars Von Trier, que posa de filho rejeitado pelo pai e faz suposições divertidas sobre a vida sexual do velho Ingmar. De resto, é tudo tão superficial e descartável quanto uma panorâmica nas lombadas de uma estante sem que se retire ao menos um livro para folhear. ♦ ♦
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SACRO GRA
Quem estiver razoavelmente habituado a ver documentários recentes, especialmente os brasileiros dedicados a personagens de periferia, dificilmente vai entender a decisão do júri de Veneza de dar o Leão de Ouro a Sacro Gra. Ali está o que de mais inócuo o cinema direto pode suscitar: uma observação fria e indiferente que não consegue criar dramaturgia nem construir criaturas minimamente interessantes.
O verbo “conseguir” talvez não se aplique ao método do diretor Gianfranco Rosi. Ele não parece mesmo interessado em forjar empatia ou fornecer uma visão menos superficial de seus personagens. Um bombeiro socorrista, um cientista devotado a proteger palmeiras, um aristocrata que aluga sua mansão para eventos, um velho meio filósofo e sua filha, um pescador de enguias, um estranho casal que vive num trailer, algumas stripers… Essas figuras pitorescas são vistas através de fragmentos de diálogos ou monólogos sem continuidade, alternados num misto de falso flagrante e cenas posadas. O aleatório de tudo isso leva a uma sensação de quase completa irrelevância.
A relação dos personagens com a estrada – o Grande Raccordo Anulare (GRA) – é igualmente desimportante, à exceção talvez dos romanos que possam completar os sentidos com a própria vivência da cidade. Para nosotros, aquela gente poderia estar em qualquer lugar da Itália e continuaria a não significar muita coisa. Alguns podem se impressionar com as belas imagens (noturnas que lembram as do nosso fotógrafo Ivo Lopes Araújo) e o trabalho sonoro de supressão de ruídos, que cria uma atmosfera intimista e quase irreal para a rodovia e suas cercanias. Mas essas qualidades de estilo me pareceram insuficientes para justificar um trabalho tão insípido, aborrecido e, no fundo, bastante pretensioso. Uma pena que o Leão vesgo de Veneza tenha mirado errado quando decidiu pela primeira vez agraciar um documentário. ♦
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ROUBAMOS SEGREDOS: A HISTÓRIA DO WIKILEAKS
Alex Gibney não conseguiu entrevistar diretamente os dois personagens principais de Roubamos Segredos. Bradley Manning, o soldado que vazou o lote de informações sobre a guerra do Afeganistão, está preso incomunicável. Julian Assange, o criador do Wikileaks, em seu refúgio na embaixada do Equador em Londres, pediu 1 milhão de dólares pela entrevista. Gibney recusou-se a pagar e fez um filme que comprova: é possível realizar um grande documentário sem conversar com seus protagonistas.
A riqueza do material recolhido sobre Assange – incluindo cenas da intimidade do seu trabalho – permite desenhar um perfil abrangente do mais famoso hacker da História desde suas primeiras peripécias na Austrália natal, passando pelo estouro na Islândia e o inferno das denúncias de crime sexual. Sobre Manning, o filme recorre a um ex-namorado e ao amigo que o denunciou ao governo americano para rascunhar uma personalidade em crise, marcada por problemas de inadaptação social e identidade sexual. Aliás, se dessa incrível história tão típica do nosso tempo emerge alguma consideração humana é que o nerdismo da computação e da internet absorve carências pessoais profundas e estimula a sensação de onipotência. Assange, em seu radicalismo, assume uma postura quase deífica quando coloca vidas humanas abaixo da sua convicção de que tudo deve ser divulgado exceto as fontes.
Gibney usa um artifício dramatúrgico passível de contestação. Na primeira parte do filme, reúne as referências elogiosas a Assange e ao Wikileaks. Quando a trajetória de ambos chega aos impasses mais recentes, os mesmos entrevistados de antes revelam-se como ex-colaboradores e desafetos, dando margem às restrições e críticas que matizam o herói descrito até então. É um truque, sem dúvida, mas possibilita uma visão mais complexa do personagem, sem louvações escancaradas nem demolições raivosas.
Para além dos indivíduos, o filme expõe um dossiê de atualidade extremamente preocupante e ao mesmo tempo excitante. Depois da popularização da web e em seguida ao 11 de setembro, a ideia de segredo se transformou numa obsessão e num pesadelo. Tudo pode ser escondido com a mesma facilidade com que pode ser descoberto. Para surpresa do espectador, o título original do filme, “We Steal Secrets”, não vem de uma fala de Assange nem de qualquer privacy breacher adolescente, mas de alguém inesperado. As recentes revelações de espionagem virtual dos EUA e do Canadá em outros países descortinam uma espécie de mega-Wikileaks oficial e põem na berlinda o próprio estatuto do segredo. Julian Assange caminha para se transformar, de estrela da mídia e até símbolo sexual, em apenas um capítulo do fim da história da privacidade. ♦ ♦ ♦ ♦ ♦
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BEHIND THE CANDELABRA
Michael Douglas e Matt Damon podiam bordar MD no enxoval. Em Behind the Candelabra eles percorrem toda as fases de um drama conjugal, da sedução à separação. Douglas é Liberace, o pianista brega que encantou multidões na TV, no cinema e nos cassinos de Las Vegas e foi o artista mais bem pago do mundo nos anos 50-70. Damon é Scott Thorson, o garotão misto de amante e filho adotivo. As extravagâncias do estilo de vida e o jeitão bofe do casal fazem tudo ser visto como comédia, hilariante em vários momentos.
Pena que o filme se estenda um pouco e apresente umas barriguinhas parecidas com as do casal. Mas o gosto com que Steven Soderbergh e os atores se entregam a essa reconstituição vale cada minuto. Não há sequer uma imagem do Liberace real no filme. Douglas o personifica em capas de revista e de livro, e até mesmo em cenas de arquivo. Mas basta comparar o filme com os materiais disponíveis no Youtube (sobretudo este aqui) para ver o talento da caracterização. A alguns Candelabra pode parecer desnecessário e vazio, mas eu me diverti um bocado. ♦ ♦ ♦
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SEDUZIDOS E ABANDONADOS – OS BASTIDORES DE CANNES
Se o crowdfunding desse filme passasse por mim eu não embarcaria. Ora, ver diretores famosos reclamando que Hollywood agora só pensa em dinheiro, astros de bilhões de dólares dizendo que a celebridade é passageira e magnatas defendendo-se do “crime” de serem ricos não é exatamente o que eu mais queria ver num documentário sobre cinema. Mas, no fundo, é isso o que o diretor James Toback e o ator Alec Baldwin nos oferecem com seu passeio pelo Festival de Cannes de 2012. Eles estão lá brincando de captar recursos para um filme de amor e “sexo exploratório” passado em meio ou após a guerra do Iraque, inspirado em Bertolucci a partir do título “O último tango em Tikrit”.
Claro, nunca é inútil ouvir Scorsese ou Bertolucci falar de seus filmes, ainda que num regime de improvisação e superficialidade. Mesmo assim, por mais ocasionalmente divertida que seja, a brincadeira de Toback e Baldwin (os seduzidos e abandonados do título) parece filme de algum universitário que penetrou no festival com um bom cinegrafista e conseguiu chegar perto de alguns grandes. Eles são simpáticos, todos são simpáticos, mas nada se avança além de obviedades: Hollywood não dá mais valor às tramas e à “visão” dos cineastas, mas somente aos valores de mercado; o tempo das megaestrelas duradouras ficou para trás; o cinema é efêmero como a vida, embora confira um certo grau de imortalidade. A ambição de extrair uma reflexão de fato importante dessa pequena aventura cômico-jornalística abandonou seus autores e os deixou com um bom extra de DVD. ♦ ♦
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EU E VOCÊ
Um Bertolucci sem sexo nem política é algo raro de se ver. Io e Te é um deles. Talvez por isso seja tão pouco bertolucciana essa história de um adolescente claustrofílico, antissocial e edipiano que foge da família durante uma semana escondendo-se no porão do prédio onde mora. Sua meia-irmã viciada em drogas por acaso vai fazer-lhe uma companhia a princípio indesejada. Ao contrário dele, ela é exposta demais. Será que a convivência vai mexer com o modo de vida dos dois?
O problema é que a relação deles quase não evolui, e o pouco que faz é de modo bastante previsível. Há uma série de metáforas envolvendo animais e um psicanalista em cadeira de rodas que pode ser uma projeção do próprio diretor. Os atores têm atuações muito naturais, o que é bom para a historinha mas esvazia a tensão de outros trabalhos de Bertolucci como o último e longinquamente assemelhado OS SONHADORES. Enfim, um filme pequeno, pouco reconhecível na filmografia do mestre, e onde as canções de David Bowie jogam uma pálida luz de vida. ♦ ♦
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WALESA
É irresistível buscar paralelos e diferenças entre Walesa, O Homem Esperança e Lula, o Filho do Brasil. Não apenas pela semelhança de trajetória dos personagens, mas também pela similaridade dos projetos de contar a ascensão dos personagens, entre a família e o trabalho, até pouco antes de ambos chegarem à presidência da República. Se em Lula temos a coadjuvante-âncora de Dona Lindu, em Walesa há Danuta, a esposa que recebe os rebatimentos das lutas do marido. Nos dois filmes, acompanhamos a transformação de um operário em líder sindical e depois líder nacional. Mas ao contrário do Lula de Fábio Barreto, cuja história seguimos desde a infância passando por sua formação, o Walesa de Wajda já encontramos pronto, autodidata, muito cioso e ciente da sua condição de líder. Isso reduz bastante a ideia de uma biografia, concentrando-se num recorte temporal menor, embora não necessariamente mais denso.
O caráter mais modesto e a inteligência menos fanfarrona de Lula fazem dele um personagem mais carismático. As formalidades burocráticas do regime comunista tornam o filme de Wajda mais sombrio, embora não tanto quanto O Homem de Mármore e O Homem de Ferro, os dois tomos anteriores da trilogia. O mestre polonês quis aqui fazer um espetáculo didático que sintetizasse grandes questões em diálogos e situações pontuais (como a ótima sequência em que uma guarda do presídio amamenta a filha do sindicalista preso). Em relação ao estilo, a mescla de imagens de arquivo das lutas do Solidariedade com o material encenado, tanto no que diz respeito aos enquadramentos quanto às texturas, é bastante sugestiva, um pouco na linha do No, de Pablo Larraín.
Lula e Walesa são dois filmes-elogio. Talvez a grande diferença entre eles seja o gênero adotado. Lula era um melodrama político que atuava a nível das simpatias e afetividades. Walesa é um drama passado no xadrez da política, que depende menos de valores afetivos. A vaidade de Walesa, realçada em muitos momentos e principalmente na entrevista a Oriana Fallacci, mostrada de maneira quase caricata, é uma tintura algo crítica que Wajda utiliza para temperar seu aplauso ao “homem esperança”. ♦ ♦ ♦
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DAMAS DO SAMBA
O mundo do samba tem sido uma fonte aparentemente inesgotável de abordagens pelo cinema documental. A cada realizador compete encontrar o seu ângulo, o seu recorte, e a euforia do samba cuida de providenciar o restante. Susanna Lira, em Damas do Samba, procurou dar conta do axé que as mulheres trouxeram para as quadras, terreiros e pistas do carnaval. Não se assuste com as primeiras sequências um tanto histórico-explicativas, pois não são elas que vão dar o tom dominante. O roteiro trata do feminino no samba numa linha evolutiva que vai da Tia Ciata no início do século passado às meninas espevitadas que levam o gingado para o futuro nas escolas de samba mirins. Por esse caminho passam as tias, pastoras, baianas, porta-bandeiras, destaques, passistas, carnavalescas, aderecistas, cantoras – de figuras mitológicas a herdeiras da grande dinastia sambística carioca.
Quase todas aparecem “montadas”, maquiadas, numa espécie de elogio do glamour ou da sensualidade. Várias delas oferecem pequenas performances à capella, destacando-se Dona Ivone Lara cantando Sonho Meu e Beth Carvalho imitando Clementina de Jesus. A abordagem interpretativa do fator feminino vai aos poucos cedendo lugar a simples manifestações de júbilo e emoção na medida em que elas falam de suas atividades e seu orgulho. No fim, impõe-se o clima de celebração, em meio a imagens muito bonitas que tiram partido do cromatismo exuberante dos figurinos do carnaval. Assim Damas do Samba acaba confirmando a noção de que, não importa a intenção inicial, tudo o que é do samba acaba mesmo em samba. ♦ ♦ ♦
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O ESPÍRITO DE 45
Pela metade da projeção de O Espírito de 45, Ken Loach faz a tela escurecer e produz um corte violentíssimo. Do elogio da Inglaterra Trabalhista dos anos 1950 ele passa à imagem de Margaret Thatcher. Não faz com isso apenas um salto no tempo e na ideologia, mas justifica o projeto deste filme. Evocar a onda de estatização, regeneração econômica e busca de bem-estar social do pós-II Guerra, quando o Partido Trabalhista formou o seu primeiro governo majoritário, serve como âncora para uma crítica aguda ao desmonte dessa herança nos governos conservadores a partir da Dama de Ferro.
Loach crava a bandeira de seu argumento nas memórias e avaliações de homens e mulheres comuns que viveram a juventude nos anos 1940 e 50. Eles viram a Inglaterra sair empobrecida e adoecida da guerra para retomar seus brios após a eleição de Clement Atlee. O país parecia concretizar enfim uma utopia do bem comum cultivada desde o século XIII. Loach não deixa, porém, de matizar a discussão, incluindo depoimentos que contestam a legitimidade popular daquele projeto. Mas sua posição pessoal soa clara. A curva dramática pós-Thatcher vai fechar-se com os novos movimentos anticapitalistas que irrompem desordenadamente em tempos recentes e com uma defesa enérgica do Serviço Nacional de Saúde, último bastião ainda não privatizado. A entrada final da cor no filme preto e branco expressa uma tênue esperança na sobrevivência da utopia.
Um material de arquivo deslumbrante é usado a puro serviço da narrativa histórica, sem chamar atenção sobre si mesmo nem sobre o montador (Jonathan Morris). Pode-se chamar isso de naturalismo documental, mas nada pode ser mais fluente e nobre quando se pretende debater ideias pela via audiovisual. ♦ ♦ ♦ ♦
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MAZZAROPI
A estreia do crítico Celso Sabadin como diretor não esconde seu DNA: Mazzaropi é filme de pesquisador, daqueles que adoram reunir dados, relacioná-los e apresentá-los de uma forma ágil e esclarecedora. Basta ver a quantidade de vertentes pelas quais ele procura retratar o cômico mais popular da história do cinema brasileiro: o artista de veia circense, o empresário arrojado, o produtor unha-de-fome, o companheiro ora grosseirão, ora carinhoso. A revelação de sua homossexualidade tem sido uma referência constante a este documentário, mas a verdade é que ele informa coisas bem mais relevantes para se compreender o fenômeno Mazzaropi.
Depoimentos, muitas cenas de filmes e algum “povo fala” compõem a pauta bastante convencional do doc. Da pletora de relatos colhidos por Sabadin, alguns “ensaios” se destacam sobre, por exemplo, a estética caipira paulista e a eterna polêmica entre arte popular e cultura intelectualizada. A natureza do personagem Mazzaropi acaba catalisando uma série de pronunciamentos anti-intelectuais e algumas platitudes sobre o valor do final feliz. Ainda assim, Mazzaropi permite nas entrelinhas uma leitura crítica do empreendedorismo brazuca e dos discursos excludentes sobre a cultura. ♦ ♦ ♦
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MÁRIO LAGO
Bem que ele avisa na abertura do filme: homenagens precisam fazer chorar para serem bem-sucedidas. Se o homenageado morrer, então, é a glória. Mário Lago morreu em 2010, logo não há mais perigo. Familiares, amigos e colegas de trabalho podem elogiar à vontade, se emocionar com as lembranças deixadas pelo poeta, compositor, ator e homem de rádio. O corpo não está mais presente para sofrer os efeitos.
O documentário de Marco Abujamra e Markão Oliveira é uma peça de louvação de Mário Lago, mesmo quando se refere a seu lado mulherengo e boêmio, devidamente redimido por um casamento dito perfeito. Cenas de televisão e cinema recontam momentos diversos de sua carreira, às vezes com função metafórica, passo a passo com as histórias do comunista assumido que conquistou um lugar, se não ao sol, pelo menos ao mormaço na Globo da época da ditadura. Com alguma frequência, a força das rememorações se dilui no fluxo dos temas sucessivos, deixando uma impressão de trivialidade. Mas, no fim das contas, é o personagem carismático que se impõe, um cronista do modo de vida brasileiro que se espalhou por diversas formas de expressão. ♦ ♦
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MANUSCRITOS NÃO QUEIMAM
O título é inspirado na frase de O Mestre e a Margarida, de Mikhail Bulgakov, que se referia à censura soviética. A trama desse thriller iraniano alude diretamente à perseguição movida pelos governos recentes aos intelectuais e artistas dissidentes. Um deles é o próprio diretor Mohammad Rasoulof, preso em 2010 – junto com Jafar Panahi e outros 15 – e proibido de filmar por 20 anos. Rasoulof desafiou o veto filmando clandestinamente nas ruas e estradas do país. É de clandestinidade que trata o filme, afinal. Um matador de aluguel é seguidamente contratado pelo serviço secreto do governo para eliminar escritores. Numa dessas missões, ele deve “cuidar” de autores que protegem cópias de um manuscrito que denuncia um episódio aterrador, do qual ele próprio, o matador, foi um dos portagonistas. Tais fatos teriam se desenrolado em fins dos anos 1980.
Rasoulof não espetaculariza o que não acontece como espetáculo. A ação fria e metódica dos carrascos e do mandante – este um gélido editor de jornal a serviço da inteligência oficial – é observada em detalhes excruciantes. O estilo lembra às vezes o do turco Nure Bilge Ceylan, com seu senso de paisagem e de acompanhamento minucioso da conduta corporal. Uma determinada cena de fundo simbólico assemelha-se ao banho de cachoeira de O Som ao Redor. De resto, a dicotomia muito explícita entre intelectuais vitimados e agentes do poder monstruosos pode soar um tanto maniqueista, por mais que seja impróprio aplicar esse adjetivo a semelhante conflito. O risco de abordagens desse tipo é situar na faixa da patologia um comportamento que se caracteriza, ao contrário, como mediocremente normal na prática do estado autoritário (no sentido de Hannah Arendt). De qualquer forma, este é um filme forte, audacioso e muito bem realizado. É o segundo que vejo neste festival com uma equipe formada por anônimos (depois da equipe indonésia de O Ato de Matar). Aqui, porém, embora sem nomes na tela, os atores estão expostos ao que der e vier. A eles, o distintivo da coragem. ♦ ♦ ♦
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MARCEL OPHULS, O VIAJANTE
Há uma simpática dose de vaidade nesse projeto de Marcel Ophüls de dirigir sua autobiografia, usando como “escadas” o cinegrafista Vincent Jaglin e amigos do porte de Jeanne Moreau e Frederick Wiseman. O grande documentarista de A Tristeza e a Piedade (lançado em DVD pela Videofilmes) e Hotel Terminus assumiu para si a tarefa de deixar seu filme-testamento, no qual relembra episódios de sua vida, comenta o trabalho do pai, Max Ophüls, e suas amizades com François Truffaut, Otto Preminger etc. A vaidade responde pela extensa inclusão de Woody Allen, cujo único vínculo com ele parece ter sido a menção a Le Chagrin et la Pitié na comédia Annie Hall.
Por outro lado, é de se notar que Ophüls não dá grande destaque ao seu próprio trabalho. E deixa perguntas que não combinariam com um artista vaidoso e seguro de si: “Será que os críticos elogiaram meus filmes por ser eu filho de Max Ophüls?” ou “Será que Truffaut comeu minha mulher?”. Para mim, o dado mais surpreendente de Le Voyageur foi revelar a joie de vivre de Marcel. Afinal, o autor de graves e longos docs sobre crimes nazistas foi também o diretor do sorvetinho Nouvelle Vague Peau de Banane (1963) e um cultor do cinema americano clássico e do puro divertimento. Ao se narrar neste filme, ele parece às vezes um Maurice Chevalier aposentado. Lamenta ter perdido a chance de “morrer nos braços de Bogart” quando era um jovem ator em Hollywood e faz troça da “chatice” de Antonioni. Um pândego esse Marcel. Mas saí do cinema com uma pergunta: por que ele não faz qualquer referência a Lola Montés, o último e mais famoso filme do seu pai? ♦ ♦ ♦
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CIDADE DE DEUS – 10 ANOS DEPOIS
O filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund foi um marco nacional e internacional do cinema brasileiro e nutriu uma geração de novos atores e profissionais da área. Mas daí a ser um toque de Midas na vida da garotada pobre que dele participou vai uma distância considerável – que, aliás, nenhuma obra de arte consegue ou precisa eliminar. Avaliar essa distância é o que faz esse documentário de Cavi Borges e Luciano Vidigal, nascido a partir de uma ideia original da jornalista Maria do Rodsário Caetano. Entre os muitos exames possíveis dos efeitos de Cidade de Deus, escolheu-se aquele exercido sobre os jovens atores vindos da favela.
Usando basicamente depoimentos frontais para a câmera, o filme mapeia o choque cultural provocado pelo filme, as expectativas ingênuas de alguns, a aplicação do dinheiro recebido como cachê, o aproveitamento maior ou menor da grande oportunidade e a dura ingerência do ambiente circundante nos sonhos dos moleques. Após um início “excitante” que evoca CDD em Cannes, é como se o filme fosse aos poucos caindo na real, culminando com um libelo contra a desigualdade racial na sociedade brasileira – algo que me soa discutível quanto à adequação a este doc. A dificuldade em “sair” de CDD parece ter sido tão grande quanto a dificuldade em “ficar” na bolha dourada do grande sucesso. O encontro desajeitado entre Seu Jorge, hóspede de um hotel de luxo, e Felipe Paulino, o menino que levava o tiro no pé e hoje é aprendiz de hotelaria no mesmo estabelecimento, condensa muito bem essas encruzilhadas que tanto projetam astros como produzem pixotes. ♦ ♦ ♦
Obs.: Na quarta-feira, haverá uma sessão do filme às 13h no Armazém do Festival, seguida de debate com os diretores, o editor e roteirista André Sampaio e a produtora Carla Osório, mediado por mim.
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FEIO
Feio é um thriller de sequestro. Indiano. E isso faz toda a diferença. O cinema indiano é pródigo em excessos de todo gênero. Feio tem excesso de subtramas, de falsas reviravoltas, de personagens secundários e terciários, de locações, de música impactante, de atuações over the top. Um excesso de excessos. A divisão por gêneros em Bollywood é brutal: Feio é filme para uma plateia masculina, que supostamente aprecia rispidez na forma e no conteúdo, um clima de constante brutalidade e violência entre policiais cínicos ou rancorosos e civis que se insinuam entre as frestas da lei e da ordem.
A menina sequestrada é filha de um candidato a ator e enteada do chefe de polícia de Mumbai. Os dois têm uma rivalidade que vem dos tempos do colégio. Daí o enredo tortuoso envolvendo policiais e gente que vive de representar, forjar e enganar. O domínio da técnica é praticamente absoluto, mas ao final dos exaustivos 127 minutos de projeção, fica a impressão de um barroquismo dramatúrgico para “engordar” um mero fait-divers na crônica do desaparecimento de meninas no país. A registrar outro excesso curioso: o de telefonemas em celular e de referências à teconologia da comunicação, cartões de crédito etc. Esse campo de interesse na Índia contemporânea é algo que o filme de Anurag Kashyap sublinha como uma obsessão nacional. ♦
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THE CANYONS
Em The Canyons, o velho Paul Schrader continua ousado, mostrando muita nudez, surubas, banhos de sangue e gente fumando de montão. Também se lixa para psicologismo barato e conduz seus personagens a golpes rudes, sem firulas. Mas é forçoso reconhecer que a trama armada por Bret Easton Ellis é muito vagabunda: um quadrilátero amoroso nas franjas de Hollywood, com gente que tenta passar do submundo paralelo para o supermundo do estrelato. Um jovem ator encontra sua grande chance mas se vê objeto de uma armação envolvendo um psicopata e sua namorada.
A história evolui à base de canastrices do elenco liderado pelo ator pornô James Deen e a barraqueira Lindsay Lohan (a melhor em cena, aliás). O filme explora razoavelmente a paisagem e a arquitetura residencial de Hollywood, enxertando aqui e ali fotos de cinemas arruinados. The Canyons trata de uma certa decadência, personificada por gente que faz (ou tenta fazer) cinema mas não gosta de cinema. E como deve ter isso em Hollywood! ♦ ♦
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O HORÁRIO NOBRE NO AFEGANISTÃO
Existem atualmente mais de 70 emissoras de TV no Afeganistão, mas a campeã de audiência é a Tolo TV, canal privado que transmite jornalismo, novelas, séries de ação, musicais e o famoso programa de calouros Afghan Star, que já mereceu dois documentários. O Horário Nobre do Afeganistão (The Network), da australiana Eva Orner, pretende fornecer uma visão geral do trabalho e da importância social da Tolo a partir, principalmetne, da palavra de seus dirigentes. Assim conhecemos essa próspera família Mohsein, que voltou do exílio na Austrália após a queda dos talibãs e decidiu contribuir para o progresso do país assumindo o seu papel de elite e “dando voz” e “educando” o povo através de um canal de televisão.
O filme soa como uma peça de divulgação da Tolo, uma vez que não oferece qualquer perspectiva divergente da de seus criadores e executivos. Não se sabe como os Mohsein fizeram sua fortuna ou conseguiram instalar esse pequeno fenômeno de comunicação no país. Não ouvimos nenhuma voz crítica ao modelo de propulsão social baseado no entretenimento, parte dele patrocinado por órgãos internacionais e a embaixada americana. A argumentação é uma só: a Tolo TV ajuda a melhorar a vida das mulheres e a trazer diversão e esperança para o povo afegão. Isso pode estar de fato acontecendo, mas se um filme elege um discurso único para apresentar – e alonga esse discurso além da conta –, bem, a gente começa a desconfiar. ♦ ♦
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FRANÇOIS HOLLANDE NO PODER
Os lustres do Palácio Elysée talvez apareçam mais nesse filme do que o próprio presidente da França. Essa frequência denota como o diretor Patrick Rotman enfatizou o enfoque no cerimonial e no aparato que cerca a figura presidencial, vista quase sempre nos limites dos locais de trabalho. Le Pouvoir não é um documentário que se interesse pelos bastidores num segundo nível (os entreatos do poder e a vida pessoal), mas num primeiro nível mais superficial: as sessões de fotos com Raymond Depardon, as caminhadas pelos salões, a infinidade de apertos de mãos, a preparação das mesas de reunião ou refeição, a supervisão de discursos e ajustes de agenda etc.
Com cerca de 1 hora de filme, o estilo de Hollande já está demarcado: “amizade sim, familiaridade não”; um leve perfume de autoritarismo matizando a mensagem socialista básica. Dali em diante, o filme se estende em observações um tanto repetitivas. Como guia principal, reflexões em off do presidente, o que dá um certo tom de chapa branca. As conversas com ministros e assessores são vistas sempre pelas bordas, geralmente atendo-se às primeiras frases. Nada muito excitante, portanto, já que no período coberto (o primeiro ano de mandato) a crise econômica e a impopularidade ainda não o haviam atingido. Se é historicamente irrelevante, como revelação das coxias do poder é bem pouco atraente. ♦ ♦
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CATIVAS – PRESAS PELO CORAÇÃO
O filme de Joana Nin é muito pouco do que se espera de um documentário sobre o mundo penitenciário. Não se fala em crimes nem de rotina carcerária, não há depoimentos sobre justiça ou violência. O que temos são sete diferentes histórias de amor vividas entre mulheres livres e presidiários na periferia de Curitiba. Joana avançou e ampliou uma pesquisa que havia resultado no premiado curta Visita Íntima (2005). São novas as personagens e diversificadas as situações em que o amor, o companheirismo e a dependência mútua se sobrepõem ao fardo das culpas, aos preconceitos e à barreira das grades da prisão.
O acesso da diretora à intimidade de suas personagens é notável, chegando mesmo a filmar um casamento no presídio, o encontro sexual de um casal e a comovente primeira visita de uma jovem ao seu namorado. O eixo condutor do filme são as cartas de amor, curiosamente recheadas de desenhos românticos, uma espécie de Halmark carcerário. Embora não trate diretamente da questão,Cativas acaba chamando atenção para a importância dos laços afetivos na humanização do sistema penitenciário e na perspectiva de reinserção social dos presos. Mais que tudo, porém, é um irresistível filme de amor, popular e – desculpem o termo – cativante. ♦ ♦ ♦ ♦
P.S. Amanhã, segunda 30/09, após a sessão de 13h no Armazém do Festival, eu vou mediar um debate com a diretora Joana Nin, a montadora Jordana Berg e o produtor de finalização Ade Muri. Entrada franca.
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AUDIÊNCIA PÚBLICA
As experiências na fronteira entre ficção e documentário são mesmo a linha-mestra do cinema contemporâneo. Public Hearing, com esse título que soa a Frederick Wiseman, é a reconstituição de uma audiência pública sobre um projeto de expansão do hipermercado WalMart numa pequena cidade americana. O filme de James N. Kienitz Wilkins coloca atores para interpretar (lendo mais ou menos dissimuladamente) a transcrição literal da audiência, ao mesmo tempo em que usa a montagem para simular um olhar que vagueia por detalhes da plateia. Isso gera algum humor na aridez do procedimento, mas não chega a se comparar com uma comédia de David Mamet, como já disseram por aí.
Filmado em 16mm, preto e branco e todo em closes, com um uso realista do microfone e até 5 minutos de intervalo em tempo real, esse experimento pretende mostrar um exemplo do exercício da democracia à americana num momento emblemático: empresários, políticos e cidadãos argumentam contra ou a favor de um empreendimento que coloca em risco a economia e mesmo a cultura locais. Esse seria o “american spirit”, como cita um maço de cigarros manipulado por alguém. A transformação de “small towns” em “big cities” seria idealmente decidida em audiências como aquela – e cabe a esse filme transformar o evento num pequeno espetáculo sobre as tecnicalidades, o sentimentalismo e, afinal, a ineficácia do “teatro democrático”. Pois basta ver na internet que o Supercenter WalMart foi de fato construído em Allegany, NY. ♦ ♦ ♦
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A GAROTA DE LUGAR NENHUM
A ausência de sexo é uma das várias surpresas reservadas por Jean-Claude Brisseau nesse seu novo filme. Ele, que sofreu processo por acusações de assédio a atrizes no passado, interpreta aqui um professor de matemática viúvo e solitário que acolhe em sua casa uma jovem meio perdida e nunca demonstra qualquer interesse carnal por ela. Quer adotá-la, isso sim. A ambiguidade perpassa La Fille de Nulle Part de ponta a ponta. Temos uma relação provavelmente sublimada em densas conversas filosóficas sobre crença e suprarrealidade, uma frequente invasão do cotidiano por elementos oníricos e uma convivência inusitada entre o natural e o sobrenatural.
Dora (Virginie Legeay, ex-aluna da Fémis onde Brisseau leciona) é uma personagem com poderes mediúnicos que fazem o velho viúvo reaver contato com a mulher morta. A trama é um tanto estapafúrdia e convida o espectador a se contentar com detalhes do entorno. No fundo, Brisseau talvez desejasse criar uma variante de Morte em Veneza, a crer na atração desse homem por uma imagem de beleza jovem e a frequente recorrência ao adagietto da quinta sinfonia de Mahler. Nisso tudo o veterano cineasta caminha numa linha tênue entre a pretensão ao sublime e o perigo do ridículo. ♦ ♦
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O ATO DE MATAR
Documentário recordista de repercussão da temporada internacional, produzido por Werner Herzog e Errol Morris, O Ato de Matar (The Act of Killing) pinta um dos quadros mais pavorosos da história da crueldade humana. Não só pelo seu tema – o massacre de mais de 1 milhão de suspeitos de comunismo entre 1964 e 1965 na Indonésia -, mas principalmente pela frieza, cinismo e impunidade com que os carrascos relatam e encenam seus feitos perante a câmera de Joshua Oppenheimer. O ex-gangster Anwar Congo e o paramilitar Herman Koto concordaram em liderar uma equipe de filmagem-dentro-do-filme para fazer uma produção trash reconstituindo as torturas e assassinatos que cometeram.
Esse procedimento, ao mesmo tempo que permite a exibição de detalhes dos estrangulamentos com arame, decapitações e outras façanhas, envolve tudo num clima “inocente” de cinema barato e sublinha o caráter subhumano dos personagens. Daí nasce uma ambiguidade, na qual os personagens reais se confundem com atores e o sadismo chega à tela como algo quase inacreditável. O cinema hollywoodiano tem participação importante como fornecedor de mitologias e modelos de ação para Anwar Congo. Ele mesmo era dono de uma sala de exibição, e o interesse dos comunistas em restringir a entrada de filmes americanos no país foi um dos fatores que alimentaram sua sanha assassina.
O que mais espanta é que até hoje aqueles homens sejam cultuados como heróis, contem impunemente seus crimes em programas de TV, pratiquem extorsões abertamente e contem com o apoio explícito de ministros de estado. A Indonésia segue sendo um país submerso no horror. O filme de fato impressiona, mas poderia ser menos repetitivo e, em vez de 160 minutos, ter uns 40 a menos. ♦ ♦ ♦
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UM TIME SHOW DE BOLA
Que os argentinos façam o mais massivo filme latino-americano passado no âmbito do futebol, idealizem uma equipe imbatível e ainda construam na ficção “o maior estádio do mundo” é coisa demais para o torcedor brasileiro aguentar. Mas quem fizer ouvidos moucos a essas provocações não vai deixar de curtir Um Time Show de Bola. O mais caro blockbuster do cinema hermano aspira a um lugar entre os grandes da animação contemporânea. A história assemelhada à de Toy Story e o nível de ponta da animação 3D praticamente equiparam Metegol ao melhor da produção americana.
A intenção de criar personagens universalmente carismáticos com traços fortes do jeito argentino de ser é uma ousadia afinal bem realizada. As citações de clássicos do cinema ajudam a criar um repertório familiar a todos, haja vista que o filme se destina a um público de todas as idades, embora talvez mais especialmente masculino. Juan José Campanella abusa um pouco do seu típico pensamento desejoso, fazendo o impossível acontecer na história por força das virtudes pessoais e da consciência humanista em relação ao progresso e à megalomania. É impossível não ver o vilão superjogador como uma crítica à mania de grandeza argentina.
A direção é excessiva também na invenção de truques visuais e narrativos, que acabam cansando um pouco. Mas a fluidez dos movimentos, a fantástica expressividade dos olhos e lábios dos personagens, a direção de arte impecável e o uso funcional do 3D sustentam um interesse permanente. O fato de os jogadores de totó terem a mesma cara, diferenciados apenas pelo cabelo e o comportamento, é mais um desafio vencido galhardamente. ♦ ♦ ♦ ♦
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