Quando os cinejornais do Estado Novo enfocavam a chegada de Getúlio Vargas a grandes eventos, as cenas eram perturbadoramente semelhantes ao efusivo desembarque de Hitler em Nuremberg como retratado em O Triunfo da Vontade. Esse é apenas um dos muitos exemplos de semelhança entre as imagens oficiais brasileiras da época e a estética alemã dos anos 1930-40. Apontar, analisar e contextualizar esses influxos é a tarefa a que se impôs o pesquisador, professor e cineasta Miguel Freire em Fotografia Getuliana – Imagética germânica na construção do olhar fotográfico nos tempos do Estado Novo (Kotter Editorial, 2016).
Miguel não foi o primeiro a se debruçar sobre o assunto. Antes dele, pelo menos Aline Lacerda, Lauro Cavalcanti, Maria Rita Galvão, Mauricio Lissovsky e Beatriz Jaguaribe já o estudaram, em maior ou menor extensão. Fotografia Getuliana tem o mérito de resenhar esses trabalhos anteriores e interrelacioná-los, reunir preciosas referências teóricas sobre as questões do olhar e do totalitarismo, além de deter-se numa dissecação minuciosa de cinejornais e fotografias. A obra de Leni Riefenstahl mereceu um capítulo especial na qualidade de matriz de uma arte colocada a serviço de um poder totalitário.
O estudo se dá, principalmente, pelo cotejo em duas frentes: de edições do Cine Jornal Brasileiro, produzido pelo DIP de Vargas, com documentários e cinejornais da era nazista; e do projeto de revista Obra Getuliana, conduzido por Gustavo Capanema (mas nunca publicado) com o livro comemorativo Neues Deutschland, editado em 1939 para divulgar os feitos de Hitler entre alemães residentes fora da Alemanha.
Uma das grandes preocupações de Miguel Freire é afastar a ideia de que o Brasil produzisse meras cópias dos exemplares germânicos. Se Capanema tinha um exemplar da Neues Deutschland em sua gaveta, o mesmo não se pode dizer dos cinejornais, uma vez que pouco da produção cinematográfica alemã chegava ao Brasil em tempo hábil. Trata-se, isso sim, de uma filiação estilística exercida por fatores diversos. Um deles, a hegemonia da estética europeia de então, sobretudo alemã e soviética, nas artes oficiais do mundo inteiro. No caso do Brasil em particular, houve a importação de vários fotógrafos alemães que forneceram um upgrade direto à fotografia brasileira da época. Mais que influência, portanto, temos um compartilhamento de ideias e escolhas.
Miguel Freire é um estudioso devotado da luz e da composição de imagens no cinema. Seus trabalhos sobre os fotógrafos Mario Carneiro e Mario Fontenelle são referências incontornáveis. Em Fotografia Getuliana ele devassa o olhar de cinegrafistas e fotógrafos do Estado Novo em busca das formas de expressão de emoções, valores – enfim, do não visível. A detalhada descrição de sequências documentais/propagandísticas e fotografias fixas deixa claro como as angulações de câmera, a ênfase nos movimentos e formas ascendentes, a contraposição da figura do líder à massa serviam à construção de uma imagem nacional de força, juventude, beleza, engajamento, ordem e progresso. Todos atributos comuns à estética da Alemanha hitlerista.
Este livro se junta ao filme-compilação Imagens do Estado Novo 1937-1945, de Eduardo Escorel, como peças complementares. Em tempos de retorno do fascismo, agora em embalagem pop, evangélica ou empresarial, soa particularmente oportuno examinar a fundo esse momento da história em que o irracional e a supremacia dos sentimentos se impuseram sobre o pensamento e a razão.
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que perfeita resenha! destaca o que é realmente estruturante. destaque para a assertiva que conclui o texto, reforçando a relevância de lê-lo. parabéns!
Grato pelo comentário, Salvio
Obrigado Carlinhos pela leitura atenta, precisa e arguta. Meus maiores agradecimentos pelos generosos comentários
Nós que agradecemos, Miguel, pelo seu trabalho devotado e aprofundado.