Primeiro filme libanês a ser indicado ao Oscar de idioma estrangeiro, O INSULTO abre uma fresta incomum para o caldeirão étnico, político e religioso do Oriente Médio. Através de um pequeno incidente de rua que evolui para um affair judicial de alcance nacional, somos introduzidos no patamar mais corriqueiro das rivalidades quase tribais em voga na região.
A guerra civil no Líbano nunca acabou. Qualquer rusga entre cristãos e muçulmanos pode resultar em coisa séria. No filme, é o que acontece quando um ferrenho militante do Partido Cristão respinga água sem querer num feitor de obras palestino que trabalhava abaixo de sua varanda. Um xingamento tolo e uma exigência de desculpas não atendida detonam o fluxo de represálias que vão parar nas barras da Justiça. O que se segue é um palpitante filme de tribunal com ressonâncias na conflagrada opinião pública de Beirute.
A novidade, ao menos para mim, foi conhecer os sentimentos de ódio, preconceito e despeito dos cristãos libaneses contra os refugiados palestinos. Eles criticam a “proteção” da esquerda aos palestinos e o “esquecimento” de atrocidades já cometidas por estes. As discussões entre os advogados de acusação e de defesa do palestino (que têm uma surpreendente relação entre si) não escondem a complexidade histórica da questão. No entanto, o réu e o acusador apresentam um raciocínio paralelo ao de seus representantes legais, no qual o ressentimento duela o tempo todo com o senso de dignidade. Daí vêm algumas das cenas mais tocantes e inusitadas do filme.
Tenso e muito bem realizado por Zaidi Doueiri, com um elenco impecável, a meu ver O INSULTO só perde seu poder de persuasão no desfecho excessivamente conciliador. Perante todo o conflito insuflado pelo processo, é inconvincente que qualquer decisão da juíza ganhasse aquela recepção água com açúcar. A prova disso é que o filme desagradou e foi boicotado nos dois lados de Beirute. Doueiri ainda sofre represálias pela suprema heresia de ter filmado o anterior O Atentado em Israel, o inimigo comum e intolerável. Por sinal, as tensões entre Líbano e Israel escalaram nos últimos dias com a construção, pelo exército israelense, de um muro na fronteira.
Zaid Doueiri nasceu em Beirute de família muçulmana, casou-se com uma cristã, imigrou para os EUA e vive na França. Foi assistente de Quentin Tarantino antes de se projetar com os longas West Beirut e O Atentado. Com O INSULTO, projeta o cinema do Líbano ao sétimo céu. Mas acabou insultando cristãos e muçulmanos com seu pretenso libelo pela compreensão mútua. Coisas do Oriente Médio.
P.S. Recomendo ler as ponderações de Helion Povoa Neto nos comentários a este post.
P.S.2 A leitora Lúcia Ramos Monteiro alertou-me para um equívoco: o filme rodado em Israel não foi O Insulto, mas sim o longa anterior de Zaidid Doueiri, O Atentado. Informação corrigida no texto.
Acho que em termos muito gerais é isso. Mas as divisões são bem mais complexas. Por exemplo, os muçulmanos dividem-se entre os xiitas e os sunitas, que têm relações diferentes com os cristãos. Aliás, são 10 comunidades cristãs e 8 muçulmanas diferentes, cada uma com seus interesses e estabelecendo alianças próprias. Na guerra civil, houve conflitos entre cristãos e entre muçulmanos. No filme, os insultos e motivos para agressão não mencionam a religião nem uma vez, e a família palestina é aparentemente não-religiosa. A questão parece ser principalmente a relação com Israel (que ao mesmo tempo apoiou as milícias cristãs na guerra civil e causou a chegada dos refugiados palestinos ao Líbano). Por isso, o ressentimento com Israel é generalizado no país. Note que o nome de Israel é utilizado como insulto tanto pelo libanês cristão quanto pelos palestinos que pixam sua oficina. O conflito entre cristãos e muçulmanos não me parece ser, de jeito nenhum, o pano de fundo do filme, o conflito desencadeador da trama não é uma “rusga entre cristãos e muçulmanos”, como está na crítica. A rusga é entre um cristão libanês e um palestino, considerado estrangeiro. Provavelmente cristão ou agnóstico, já que em sua casa não há símbolos do Islã e sua esposa não usa véu. Essa identificação, para os cristãos, entre palestinos e muçulmanos, não é absoluta. Tanto que para refugiados palestinos cristãos foi oferecida a cidadania libanesa, em algumas ocasiões. Já os muçulmanos sunitas tendem a apoiar a causa da cidadania aos palestinos, enquanto os muçulmanos xiitas a rejeitam. O Líbano não faz recenseamentos e por isso não achei estatísticas precisas, mas um dos dados que encontrei refere-se a 40% de cristãos entre os palestinos, número que estaria em decréscimo devido à emigração. Mas é um equívoco associar os palestinos apenas ao islamismo. No mais, parabéns pelo blog e pelos bons debates.
Discordo quanto às referências aos muçulmanos. Até surpreendentemente para mim, a questão do Islã fica bem em segundo plano no filme. Que me lembre, apenas aparece uma mulher de véu islãmico, durante o julgamento. E de relance. A família palestina não ostenta nenhum símbolo religioso, e talvez nem seja muçulmana. A discriminação contra os palestinos no Líbano tem raízes profundas, e se exerce inclusive entre cristãos.
A base de todo o conflito no Líbano é a oposição entre cristãos e muçulmanos. Os palestinos são vistos como aliados dos muçulmanos. A Newsweek assim reportou as reações ao filme:
“In America, The Insult has been nominated for an Academy Award for best foreign language film. It is the first time Lebanon has had a horse in the Oscar race, a rare moment of artistic recognition for a country better known for a savage civil war that pitted Christians against Muslims and their Palestinian allies. But don’t expect parades in Lebanon. Theaters in predominantly Muslim West Beirut are boycotting The Insult, as are Palestinians on the West Bank. And left-wing critics are campaigning to get the film banned throughout the rest of Lebanon.”