Em matéria de relacionamento entre documentarista e documentado, RISK é um “case” e tanto. Laura Poitras começou a filmar Julian Assange em 2010, quando o Wikileaks, já aos quatro anos de idade, virava adulto com a publicação de centenas de documentos sigilosos sobre as ações bélicas dos EUA no Iraque e Afeganistão. Era então declarado como ameaça à segurança nacional.
O acesso não foi fácil, mas depois tornou-se amplo e quase total. Laura gravou telefonemas graves de Assange para autoridades americanas e conversas reservadas dele com sua equipe. Registrou de perto toda a sua preparação para buscar asilo na embaixada do Equador em Londres, onde está até hoje, incluindo a participação da mãe na tarefa de disfarçá-lo fisicamente (foto acima). Captou muito do cotidiano de Assange no asilo diplomático. Acompanhou o apoio do Wikileaks ao soldado que vazou o famoso vídeo do ataque de helicóptero a civis em Bagdá e a Edward Snowden em sua arriscada fuga de Hong Kong para Moscou. Nesse ponto, aliás, RISK se cruza com o oscarizado Citizen Four, que Laura rodou simultaneamente e lhe valeu o qualificativo de “documentarista anti-EUA” colado pelo FBI.
Assistir a RISK é acompanhar a aventura de uma filmagem na clandestinidade com todos os imprevistos imagináveis. Imprevistos não só de natureza política e policial, mas também no que diz respeito à personalidade controvertida de Julian Assange. Na convivência, Laura descobriu, para além do corajoso arauto da liberdade de informação, um homem megalomaníaco (“tenho complexo de Deus”), autoritário, esnobe e muitas vezes cínico. A acusação de assédio sexual contra duas mulheres, motivo do temido pedido de extradição para a Suécia, e principalmente suas reações ao caso, dão margem a revelar um lado bem pouco elogiável do herói dos vazamentos. Numa sequência particularmente desconcertante, Assange se deixa entrevistar por Lady Gaga em tom de pura farra de celebridades.
Àquela altura, o vínculo de confiança entre Laura e Julian começava a se romper. A imagem dele perante ela havia mudado consideravelmente desde o início dos trabalhos. Ela condenava, por exemplo, alguns métodos do Wikileaks que não protegiam a identidade de terceiros. Ele, por sua vez, começava a perceber o filme como “uma ameaça à minha liberdade”. Os atritos iam sendo incorporados ao filme através do “diário de produção” de Laura. Num dado momento, ela se pergunta: “Por que ele confia em mim se não gosta de mim?”. Para complicar um pouco mais, Laura admite que teve um affair com um assistente de Assange que viria a ser igualmente acusado de violar mulheres.
As desavenças que levaram a um rompimento final certamente não estão divulgadas em toda a sua extensão. RISK termina como um libelo que azedou por dentro. Narrado como um thriller de suspense, com música tensa e ritmo inquietante, mergulha o espectador nos bastidores de um dos grandes episódios da História recente. Como convém às novas formas de circulação da informação sigilosa, o filme inclui nos créditos finais os softwares de encriptação utilizados. Tanto Julian Assange quanto Laura Poitras dependem desses segredos para desvelar outros, aqueles que não devem ser guardados.
Pingback: Meus filmes mais queridos em 2018 | carmattos