Um cinema que desconfiava da revolução

Fome de Amor

Das alegorias de Nelson Pereira dos Santos à anarquia de O Bandido da Luz Vermelha e aos impasses de Memórias do Subdesenvolvimento, os cinemas brasileiro e cubano viviam 1968 como um ponto de interrogação.

(Texto publicado originalmente na Carta Maior)

O cinema brasileiro viveu 1968 entre o engajamento de Manhã Cinzenta, de Olney São Paulo, e a ironia paródica de O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla; entre o questionamento visceral do glauberiano Terra em Transe – filmado um ano antes mas repercutido em 68 – e o desbunde que já se anunciava em filmes do chamado udigrúdi. Os ecos do Maio francês custaram um pouco mais a chegar, mas a vaga de desconfiança na revolução já alcançava a cabeça dos intelectuais envolvidos com o Cinema Novo.

Examino a seguir os exemplos de Nelson Pereira dos Santos e do clássico marginal de Sganzerla, além da obra-prima cubana Memórias do Subdesenvolvimento,  de Tomás Gutiérrez Alea, cujo personagem central encarnava justamente os dilemas do intelectual perante um processo revolucionário real.

Alegorias da conturbação: Nelson Pereira dos Santos

Os primeiros anos do regime militar mereceram de Nelson Pereira dos Santos um olhar crítico que se valeu sobretudo das comédias e alegorias. Não vamos encontrar aí a mera indignação nem a afirmativa ideológica, mas uma complexa teia de referências e figurações das contradições do intelectual de esquerda em processo de autoquestionamento.

Essa fase bastante peculiar começa com El Justicero (1967), adaptação de uma novela de João Bethencourt, filme que alguns apontam como a conclusão não assumida de uma trilogia, ou seja, o planejado mas nunca realizado Rio Zona Sul. Os cenários humildes dos primeiros filmes dão lugar pela primeira vez aos bairros praianos do Rio e seus apartamentos. Uma determinada cena, com favela e piscina dos ricos convivendo numa mesma tomada, sublinha a geografia da futura “cidade partida”. El Jus é um playboy cínico, filho de general, burguês conservador que se arvora em defensor dos fracos e oprimidos. Conhecemos o personagem através da pesquisa de um jornalista que pretende filmar sua biografia com “produção de Luiz Carlos Barreto”.

El Justicero

A autorreferência metalinguística e o embaralhamento dos signos ideológicos vai caracterizar um grupo de filmes que inclui também Fome de Amor (1968), Azyllo Muito Louco (1970) e Quem é Beta? (1972). São obras que dialogam com o Tropicalismo, o espírito hippie e a cultura do desbunde naquilo que constitui uma negação do discurso engajado ortodoxo. Nessa época, Nelson tentava desfazer-se do rótulo de cineasta sociológico. Queria falar da alienação através da ideologia. Mas não se pode deixar de considerar também que a sensação de impotência de muitos artistas de esquerda, especialmente depois do AI-5 e do fracasso da luta armada, levou-os a adotar narrativas anárquicas, crivadas de duplos sentidos e marcadas pela descrença na via revolucionária.

Figura comum nesses filmes é a do ativista inoperante que já não tenta conexão com o povo. Em Fome de Amor há mesmo um ex-guerrilheiro e traficante de armas que perdeu a visão, a audição e a fala num atentado na Bolívia. No virulento Quem é Beta?, exercício de ficção científica e o mais experimental de todos os filmes de Nelson, os protagonistas têm armas para eliminar os “contaminados” que ainda vagueiam depois de uma guerra nuclear.

Quem é Beta?

É característica desse período a mescla de alusões políticas e elementos eróticos. Atores belos como Arduíno Colasanti, Leila Diniz, Irene Stefania e Regina Rosemburgo colocam seus corpos à disposição de histórias onde o hedonismo e a discussão ideológica não se excluem reciprocamente. Na verdade, esses filmes testemunham um certo deslocamento das pulsões políticas para a esfera do sexo e da trip alucinógena. A linguagem se esgarça na experimentação: cortes bruscos, ações fragmentadas, tempos alternados, cacofonia sonora. Os filmes exprimem a confusão em que se achavam tantas consciências progressistas no auge da ditadura.

Dinamitando o discurso: O Bandido da Luz Vermelha

“Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha – avacalha e se esculhamba”. Há uma sensação de derrota e niilismo nessa fala do bandido vivido por Paulo Villaça, frase que parece definir todo o ideário do filme. Estava-se em 1968, às  vésperas do AI-5 e do esgotamento das propostas revolucionárias do Cinema Novo. As ideias de reforma e revolução começavam a ser torpedeadas. Sganzerla dinamita a própria ideia de discurso organizado, adotando uma estrutura anárquica para contar as aventuras e desventuras do seu anti-herói.

“O bandido pode atacar a qualquer momento” – assim é a linguagem do filme. Disco voador, cenas de filmes estrangeiros, show musical, performances na rua (típicas do cinema marginal) – tudo pode aparecer de repente, sem código conhecido que justifique. Tempos e lugares se alternam livremente. Instala-se um desencontro criativo entre som e imagem. O bandido apaga a palavra “cabeça” e escreve “cabessa”. Temos o elogio do erro proposital, a derrubada dos cânones.

“Quem sou eu?”, pergunta-se o personagem. Sganzerla já escrevia um roteiro quando surgiu João Acácio Pereira da Costa, bandido catarinense que, em 1967, atormentou a polícia paulista. O apelido vinha do americano Caryl Chessman, que usava uma lanterna de luz vermelha e morreu na câmera de gás em 1960. Mas a visão que temos aqui é esfacelada através de muitas vozes: a do protagonista se narrando/questionando, a dos narradores radiofônicos que se esbaldam na biografia mitológica dele.

O Bandido da Luz Vermelha

Sganzerla faz um misto de referência (nunca reverência) e inversão paródica de um cinema de Primeiro Mundo. As influências vão de Godard (Acossado,  Pierrot le Fou, Alphaville) a Orson Welles (A Marca da Maldade). É um procedimento de chanchada, antropofágico, tropicalista, bem distante da ideia de compromisso dos cinemanovistas. A paródia, aliás, atinge também o Cinema Novo quando incorpora a favela, o cangaceiro e a crítica política na figura escrachada de um secretário demagogo.

O filme vai explicitando suas fontes de inspiração: quadrinhos, policiais e filmes eróticos da Boca do Lixo, chanchadas da Atlântida, o surgimento da noção de terrorismo no Brasil. Enfim, uma colagem de tudo o que rodeava um jovem brasileiro urbano em 1968. E mais a metalinguagem, em intensidade pioneira. Num dado momento, o bandido se vira para a câmera e conclama os “ladrões de todo o Brasil”. Sganzerla inverte e amplia o signo da lanterna através do uso constante da contraluz, dos flashes e refletores espocando nos olhos do público. Desde esse filme inquieto e extraordinário, nunca mais o espectador teve sossego com o cinema brasileiro.

A consciência latino-americana em crise: Memórias do Subdesenvolvimento

Neste ano o superclássico Memórias do Subdesenvolvimento, de Tomás Gutiérrez Alea, também está fazendo 50 anos. É um evento e tanto. O Festival do Rio do ano passado se antecipou exibindo uma cópia restaurada em 35mm. Mas é possível rever o filme em DVD brasileiro. Memórias do Subdesenvolvimento permanece um filme moderno e atual porque reflete dilemas e questões que a América Latina ainda está longe de superar.

Em 1968, Cuba vivia a consolidação do chamado Triunfo da Revolução, enquanto parte do continente se debatia em ditaduras militares. O Brasil mergulhava nas trevas do AI-5. A revolução cubana servia de inspiração para as esquerdas dos países em desenvolvimento.

No campo da arte, a Nouvelle Vague, o Cinema Novo e o novo cinema cubano mudavam os paradigmas da expressão cinematográfica, elegendo a dúvida, o questionamento e a instabilidade como antídotos aos cânones do cinema hollywoodiano. O filme de Alea respirava todos esses ares a plenos pulmões.

Memórias do Subdesenvolvimento

Sergio, o protagonista, é a personificação de uma consciência em crise. Sua família burguesa resolve deixar Cuba, mas ele prefere ficar. Sozinho, sem renda e alienado do projeto coletivo então em marcha, debruça-se sobre o seu passado e não oferece nenhuma resistência a que o presente o modifique. Examina sua infância, seus amores e amizades, a ditadura de Batista e as transformações que a revolução operou a nível individual.

Sergio era a náusea existencial num momento em que tudo pulsava em torno da ideologia. Mas Alea e Edmundo Desnoes, autor do romance original, não tratam disso como uma dicotomia. No filme, o jogo imagem-texto, quase sempre irônico ou acuradamente dialético, demonstra o entrelaçamento indissociável do convívio social aos fenômenos políticos. Daí a grandeza dessas Memórias, certamente uma das dez maiores cintilações do cinema latino-americano e um dos grandes títulos da história do cinema político.

 

 

5 comentários sobre “Um cinema que desconfiava da revolução

  1. Incluo no excesso de metáforas e narrativas subjetivas nos filmes do Cinema Novo, sobretudo no período pós AI-5, a censura, o medo, a paranoia que leva auto-censura e torna as narrativas num barroquismo aonde se precisa ter senha exclusiva para se compreender aquilo que se queria dizer.

    • Às vezes isso acontecia mesmo. As alegorias podiam ser inteligentes e claras, como em “Azyllo Muito Louco”, mas também indecifráveis como em “Pindorama”.

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