Que eu saiba, é a primeira vez que o cineasta russo Sergei Loznitsa ganha uma mostra toda sua no Brasil. Vestígios e Ruptura – O Cinema de Sergei Loznitsa começa nesta quinta (4/10). Veja aqui a programação da mostra carioca, que inclui uma masterclass do diretor em torno do tema “A dramaturgia no documentário e nos filmes de ficção”. E aqui a programação em São Paulo.
Losnitza nasceu na Bielorússia e trabalhou como matemático cibernético e tradutor do japonês antes de se dedicar ao cinema. Formou-se depois na escola de documentários de São Petersburgo e mudou-se para a Alemanha em 2001. A Rússia, porém, permanceceu no foco do seu cinema duro, exigente e oscilante entre os documentários e a ficção, o realismo cru e uma crítica política que descamba com frequência para o surrealismo.
Seus filmes mostram uma Rússia historicamente comprometida com uma “mentalidade criminosa” (o termo é dele), em que a democracia não consegue ocupar o lugar da autocracia. “Como educar um povo que não quer ser educado?”, ele já se perguntou. Para a mídia oficial de Putin, Loznitsa faz um cinema anti-Rússia.
Guerra fratricida na Ucrânia
A mostra do IMS traz 10 longas e dois curtas, incluindo seu penúltimo trabalho, o filme-painel Donbass, sobre a parte da Ucrânia ocupada pela Rússia desde 2014 como parte do projeto Novorossiya (Nova Rússia). A guerra fratricida subsequente já consumiu mais de 10 mil vidas. Donbass, premiado como melhor direção na seção Un Certain Regard em Cannes, alinha uma série de episódios baseados em fatos da sangrenta relação entre separatistas ucranianos pró-Rússia e forças governistas ligadas ao Ocidente.
Loznitsa não faz um cinema para dar a entender os contextos que aborda. Para quem não conhece a conjuntura da guerra do Donbass e os ecos da II Guerra e da grande fome da época stalinista naquela região, não é fácil situar-se entre tantos personagens e situações. Mas há sempre a força própria de cada longo plano-sequência, conduzido sob um controle extraordinário na movimentação de câmera, atores e múltiplos focos de ação. São cenas de corrupção, extorsões em postos policiais, hostilização de jornalista, um casamento carnavalesco tutelado por militares, emboscadas, explosões e fuzilamentos sumários.
Duas sequências são particularmente estarrecedoras. Numa delas, uma câmera subjetiva (supostamente de um jornalista) filma um abrigo repleto de famílias esfomeadas. Na outra, um homem é apresentado como “exterminador fascista” e submetido à execração e linchamento em praça pública. Como moldura de todo esse painel, o filme abre com um grupo de atores sendo maquiado para encenar fake news de um telejornal e encerra com um retorno violento aos mesmos personagens.
Pessimismo e ressentimento
Burocratas frios, gigolôs melífluos, chefes mafiosos e defensores de direitos humanos impotentes cercam a personagem-título de Uma Criatura Gentil (2017). Ela é uma pobre mulher sem nome (Vasilina Makovtseva) empenhada numa difícil viagem desde sua aldeia para visitar o marido preso numa cidade russa não identificada. Embora inspirado pelo conto homônimo de Dostoievsky, esse drama pende mais para Kafka. A mulher esbarra em guichês intransponíveis, afirmações vagas de “não é permitido”, alegações de que há sempre algo pior do que a sua situação e pessoas interessadas em desviá-la para caminhos sem saída. “Todos são porcos, inclusive eu”, diz um mafioso, como que resumindo a visão que Loznitsa fornece da Rússia contemporânea.
A fria ironia do diretor se manifesta em detalhes como as ruas nomeadas de Lenin, Hegel e Marx; a passagem por um patético escritório de direitos humanos; e sobretudo a incursão onírica da meia-hora final, quando a mulher embarca numa carruagem anacrônica para assistir a uma espécie de julgamento farsesco do seu caso. Mesmo tendo uma personagem como eixo, Uma Criatura Gentil não deixa de ser um filme-coral como Donbass, povoado de coadjuvantes e vozes fora de campo que não cessam de trazer elementos para o quadro central.
Próximo do final desse filme, Loznitsa recria belamente o seu curta Estação de Trem (2000), ensaio visual com pessoas dormindo numa estação. No curta, os contornos das formas humanas ficam próximos da dissolução, tal o desfoque aplicado nas imagens em preto e branco. As composições singulares e o estado das pessoas naquele limbo do sono profundo lembram vídeos de Bill Viola, enquanto a banda sonora é preenchida por sons de respiração, zumbidos de mosquito e de vento, grilos e água borbulhando.
O pessimismo e o ressentimento de Loznistsa com sua terra natal podem também chegar às fronteiras do niilismo. A meu ver, foi o que aconteceu em Minha Felicidade (2010), um dos seus poucos filmes já lançados comercialmente no Brasil – e um dos mais festejados. A história de um caminhoneiro passando por sucessivos infortúnios é mais um beco sem saída metafórico povoado por bons e maus, sendo ambos capazes de matar.
A melhor cena é quando o caminhoneiro se perde numa espécie de mercado, entre mil rostos filmados à revelia e randomicamente. O homem com destino certo para sua carga é engolido pelo caos, do qual não mais conseguirá sair. A desordem do mundo não tem remissão. Nada é capaz de se salvar. Tudo é escuridão e terra jogada por cima. Nesse caso, a falta de argumentos contrastantes fez do filme uma mera indulgência com o negrume da natureza humana.
Loznitsa tem uma explicação psicopolítica para seu ceticismo: “As pessoas que vivem num país e aquelas no poder formam uma unidade. As nações criam o líder cujo rosto gostariam de ver. Não é como alguém que tomou o poder e então oprimiu e humilhou o povo”.
Eis uma verdade dura com que os brasileiros se defrontam atualmente.