Para além do título de sete letras, em vários aspectos CORINGA me fez pensar em Bacurau. Ambos vêm causando hype comparável na plateia brasileira com suas histórias catárticas e seu comentário social banhado em sangue. Os dois têm personagens que reagem com violência a ataques de uma elite cínica e predatória.
A diferença fundamental é que, em Bacurau, a reação parte de uma comunidade, enquanto em CORINGA o agente é um indivíduo que, sem perceber, catalisa um movimento coletivo. São expressões de suas respectivas culturas: o gregarismo latino-americano e o individualismo norte-americano. O filme de Kleber e Juliano mostra a força da união dos fracos, que se tornam heróis de si mesmos. O blockbuster de Todd Phillips dispara um turbilhão anárquico para gestar um supervilão. Uns apelam à droga psicodélica, outro à doença mental.
Há uma ambivalência moral por trás desses contos de vingança. A violência “santa” de Bacurau, ungida na mitologia do cangaço, é positivada como garantia de sobrevivência do caçado. A de CORINGA se apoia na argumentação social para explicar o surgimento de um malfeitor.
A ambiguidade está presente nos dois casos. Em CORINGA, está na reedição da fábula do palhaço triste, na falta de graça do candidato a humorista, na ironia com a própria imagem do sorriso que empesteia as redes sociais com seus emojis. “É muito difícil ser feliz o tempo todo”, queixa-se Arthur Fleck num dado momento. Suas danças, entre Michael Jackson e o butô, assim como sua risada psicótica, são a própria celebração da dor como forma de vida.
À condição de incel (celibatários involuntários, subcultura de solitários que vem perpetrando crimes ultimamente) Arthur soma a de pária social, vítima tanto de brancos ricos quanto de negros pobres, de estranhos e de gente próxima. Ele vive numa bolha de ilusão, mentiras e bullying permanente. Gotham City inteira parece conspirar contra ele em sua decadência urbana que lembra a Nova York dos anos 1970.
Aquela era a época do motorista de Taxi Driver e do angry man de Rede de Intrigas, que estão para Arthur Fleck como Lampião está para Lunga e o povo de Bacurau. Robert De Niro, no papel do apresentador de TV, parece um lembrete dessa filiação. Há quem puxe a ficha de Kubrick e Laranja Mecânica, mas não precisamos chegar a tanto.
CORINGA e Bacurau falam ao passado e ao presente de seus respectivos países por meio de suas cidades fictícias. No brasileiro, porém, a cidade é puramente vítima e tem uma harmonia idealizada. No norte-americano, a cidade distópica e cruel é a vilã que produz Joker.
Os dois filmes se aproximam também por uma impressão de falsa complexidade. Uma certa esquematização prevalece na divisão entre algozes e vítimas, bem como no engendramento da revanche e no encaminhamento dos espectadores rumo ao brinde da catarse, ainda que incômoda.
CORINGA impressiona sobretudo pela espantosa performance de Joaquin Phoenix e pela concepção impregnante de cada cena. Os fãs de Batman devem se deliciar com o encontro entre Arthur e o pequeno Bruce Wayne, de quem se tornará a futura e maior dor de cabeça. As testemunhas dos protestos mundiais e do ativismo dos Anonymous dos anos 2000 vão gelar diante de um trem de metrô coalhado de palhaços.
A porosidade de Bacurau e CORINGA, sua capacidade de produzir ressonâncias cinematográficas e extra-cinematográficas chegam a superar suas qualidades intrínsecas, que não são poucas. Por isso estão enchendo os cinemas e reverberando na sociedade.
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Carlinhos, que texto impressionante! Devido aos meus compromissos profissionais, só agora consegui parar e ler seu texto. Uma aula de como pensar cinema.
É muito bom quando os filmes realmente nos inspiram, não é Marco? Você sabe muito bem disso.
É o momento. Estamos enlouquecendo. O Coringa é necessário como catarse. Catarse para um mundo louco e degenerado.
Fiz cá, na minha modesta compreensão, o mesmo link.
Como sempre, Carlos Alberto arrasa!
Vou compartilhar.
Abco
Arrasamos, querida. 😀
Como sou obcecado por Network(1976), às vezes tenho a impressão que o filme todo espera aquele momento final quando o apresentador vivido pelo De Niro é “executado”. A Gotham da década de 70, os carros, os aparelhos de tv e , principalmente, a cena onde caris telas recontam o assassinato ao vivo do apresentador. Há uma reverência quase unânime hoje pelo filme( assim como sunset boulevard, do Wilder, foi ha uns 25 anos).
Network era original pela história contada sobre a força da televisão comercial. E o diretor não escapa disso quando sabemos que a tv comercial aberta ja influencia muito pouco.
Coringa é um bom chamado em uma linguagem menos complexa, como você mesmo disse. O que me assombra é o sucesso que tem feito nos EUA( acabei de checar Box office mojo).
Perguntaram ao Chayefsky( roteirista de network) que tipo de sátira era o seu filme. Ele respondeu que é tudo verdade . Não era ele quem estava ficando louco mas o mundo sim. Essa talvez seja a principal mensagem que Coringa queira passar.
Bingo! Que bom que você compartilha essa remissão ao Network. E ainda tem “O Rei da Comédia” (1982), também com De Niro.
Network é incrível!!
Vi ontem. Gostei. Como não gostar com aquela encarnação? Sempre fui muito fã de River Phoenix desde “Conta comigo” e achava Joaquim “o irmão”. Ontem fiquei impactada com a sua atuação. A encarnação do Coringa ganha uma dimensão humana por causa do ator. Também achei o filme um pouco esquemático na condução de nós, pobres mortais, no “todos os caminhos levam a isso”. Na vida de todo mundo, até dos menos afortunados, tem sempre um personagem como o do anão, que sem imaginar estar sendo especialmente amável, de fato e até por cumplicidade, fura o muro do “inexorável”. O corpo dele, a dança, os olhos (!), a risada incontrolável conjugada com a expressão de choro e desespero, tudo é muito impressionante. Um filmão, cinemão, até esquemão, mas muito além disso também. Único senão para a ideia, que o filme passa, de que os doentes mentais estariam sempre por um fio da violência, o que não é verdade. Ao contrário, são os “normais” os mais comumente envolvidos com atrocidades as mais diversas. Com uma arma e um bom motivo (ou até a falta dele) a gente sabe o que pode acontecer..Bom domingo!
Oi Aline, não acho que o filme generalize a tendência à violência para os doentes mentais. Aquele é um caso específico e muito particular, não? De resto, compartilho suas impressões e restrições quanto ao filme.