O OFICIAL E O ESPIÃO
Roman Polanski fez um filme bonito e correto sobre o Caso Dreyfus, que já tinha pelo menos 15 versões não documentais no cinema. A dele vai disputar com as de Abel Gance (1919) e José Ferrer (1958) o título de mais conhecida. Mas ninguém tira de O OFICIAL E O ESPIÃO o rótulo de mais polêmica. Não pelo filme propriamente, mas pelas circunstâncias vividas pelo diretor.
Com suntuosa produção de época e um elenco quase todo vinculado à Comédie Française, o J’Accuse polanskiano navega com segurança pelas águas do classicismo. Tem uma estrutura claramente dividida em duas partes. Na primeira, enfoca a burocracia judiciária na França de fins do século XIX, quando o tenente-coronel Georges Picquart (Jean Dujardin, excelente) começa a descobrir a fragilidade e as falsificações nas provas que levaram à condenação do capitão Alfred Dreyfus (Louis Garrel) por alta espionagem. A dialogação aqui é intensiva, com inúmeras tomadas de papéis, pastas e envelopes sobre as mesas. Um princípio de tédio se anuncia, mas é logo desfeito pela segunda parte.
Esta se dá nos tribunais, onde Picquart torna-se réu por tentar defender um suposto traidor. É Picquart, afinal, e não Dreyfus, o personagem central do filme. O ritmo cresce junto com o interesse pela brilhante atuação de nomes como Mathieu Amalric, Didier Sandre, Grégory Gadebois, Hervé Pierre e Emmanuelle Seigner. Como curiosidade adicional, o venerando diretor argelino Mohammed Lakhdar-Hamina no papel do dorminhoco Bachir.
Ainda perto do final, o filme ganha tinturas de thriller e deságua num incrível diálogo final entre Dreyfus (Louis Garrel) e Picquart, quando todas as ironias da história parecem se concentrar.
Para além das inúmeras qualidades convencionais, que lhe valeram os Prêmios César de melhor direção e roteiro adaptado, além de figurinos, O OFICIAL E O ESPIÃO se projeta na atualidade por aludir indiretamente ao Caso Polanski. O cineasta certamente viu ali uma parábola sobre sua própria condenação – e sobretudo o cancelamento social e profissional de que tem sido vítima. Enquanto as acusações de assédio e estupro se acumulam sobre ele, o filme soa como uma defesa em paráfrase, o que pode ter incendiado ainda mais a reação das feministas contra o seu reconhecimento no César.
Da mesma forma, o longa ecoa no Brasil, fazendo lembrar as falcatruas da Lava Jato e a convergência dos poderes e das opiniões reacionárias no ataque a Lula e a Dilma. O antissemitismo da Terceira República francesa equivale ao antiesquerdismo dos próceres brasileiros atuais. As ações de Picquart, por sua vez, têm paralelo com as revelações da Vaza Jato, que, pelo menos até agora, tiveram menos efeito aqui do que na França daquela época.
Instigante e provocador – como o próprio tema do filme, imagino – seus sutis comentários sobre “O Oficial e o Espião”, sem olvidar os dias turbulentos e angustiosos que viveram esses personagens da história moderna da França, assim como nós os estamos vivendo, ainda que de forma velada, no Brasil, aí insinuados, de maneira tangível, nos episódios tenebrosos da Vaza Jato. Para quem não vive no Rio, como este anônimo escriba, resta aguardar que essa nova e polêmica obra, do igualmente divisor de opiniões Roman Polanski, seja exibida em Juiz de Fora, para podermos fruir dessas altas emoções, privilégio ainda só dos grandes centros, e que só os melhores criadores nos podem propiciar. O que nos parece inquestionável é que tanto a obra que dá vida ao filme, quanto a competência do diretor e do elenco que o sustenta, dispensam comentários. Afinal, eles já pertencem aos cânones da história da Literatura e do Cinema, respectivamente, não é?
Nelson Bravo
Salve, Nelson. Grato pelo comentário. Sim, o Polanski é um dos grandes. Não se avexe por não morar no Rio. Aqui os cinemas estão fechados por tempo indeterminado. Aguardemos que o filme chegue logo ao streaming. Grande abraço.