O drama ficcional MADALENA no Mato Grosso do Sul e o documentário TRANSVERSAIS no Ceará enriquecem a temática de transgêneros no cinema brasileiro.
Fantasmas da soja
Nos primeiros minutos de Madalena, tudo o que vemos são campos imensos de soja. Estamos no Mato Grosso do Sul, um dos maiores polos do agronegócio no Brasil. A soja desenha um imenso tapete verde que, visto assim, sugere um grande vazio, cujos pontos mais remotos só os drones conhecem. Algumas emas despontam entre as folhas até que divisamos um corpo no meio da plantação. É Madalena, mulher trans, mais uma vítima de uma onda de assassinatos que (não) assombra a região.
Convém desde o início anular as expectativas de um filme policial. Em sua estreia na direção, Madiano Marcheti não está interessado no mistério, nem em sua investigação. A morte de Madalena é um leit motiv que se presta a desvelar um cenário humano e cultural muito particular. Rodado em Dourados e Bonito (MS), Madalena descortina sem pressa o mundo dos agroboys arrogantes, dos motoqueiros roncando testosterona, das dancinhas ao som de “sofrências”, das boates espelhadas e das mensagens evangélicas no ar.
Três personagens se sucedem na tela, cada um conectado de alguma maneira ao desaparecimento de Madalena. Luziane (Natália Mazarim), porteira de boate, é a primeira a perceber a ausência da amiga. Cristiano (Rafael de Bona), filho de fazendeiro e de candidata a senadora, entra em pânico com o que vê durante uma inspeção do campo. Bianca (Pâmela Yulle), amiga também trans, organiza a partilha do espólio da falecida. Eles não se conhecem entre si, nem compartilham a mesma conjuntura. Cada um está voltado para seu projeto de vida, o qual reflete um pedaço da realidade do lugar.
Ou seja, tudo converge para a crônica desse Brasil sertanejo cheio de dinheiro e desigualdades, mas onde também se encontram sinais de diversidade. A relação de Bianca com suas amigas LGBTs aparece como um contraponto à toxicidade dominante.
Embora possa soar um pouco vago no seu teor crítico quanto ao extermínio de transexuais e travestis no Brasil, Madalena tem uma consistência rara no cinema de ficção brasileiro recente graças aos méritos de realização e produção. Os espaços rurais e urbanos, filmados com rigor excepcional, parecem vazios fantasmagóricos onde a vida está submetida à produtividade. A direção é muito hábil na criação de um suspense psicológico que roça o horror, mas sem nunca embarcar nesse gênero. Os atores, em sua maioria do MS, estão impecáveis de ponta a ponta. Tecnicamente, o filme funciona como um relógio de precisão. Não é sempre que encontramos um longa de estreia com esse nível de maturidade e sobriedade.
Longe dos estereótipos
Numa live de agosto de 2019, o verme que preside o Brasil anunciou, orgulhoso, a censura a quatro projetos da Ancine. Um deles era Transversais. “Olha o tema: ‘Sonhos e realizações de cinco pessoas transgêneros que moram no Ceará’. Conseguimos abortar essa missão”, vituperou o energúmeno. Tratava-se então de uma série de TV. A resposta vem agora com o longa para cinema, que estreia na Mostra de SP.
Produzido por Allan Deberton (Pacarrete) e dirigido por Émerson Maranhão, Transversais é um luminoso e emocionante conjunto de depoimentos de seis personagens. O enfermeiro Caio e o antropólogo Kaio são homens trans que já haviam protagonizado o curta Aqueles Dois (2018), do mesmo diretor. A servidora pública e cableireira Samilla e a professora Erikah são mulheres trans empoderadas e assertivas. A adolescente Lara encontrou na mãe, a jornalista Mara, mais que um apoio em sua transição, uma militante devotada no grupo Mães pela Diversidade.
São histórias de afirmação e auto-estima, mas que não se desviam dos problemas que afetam as pessoas transgênero no Brasil. Há também relatos de rejeição familiar e melhor aceitação em famílias alheias. A discriminação pode levar, como no caso de Kaio, a ser incluído no rol dos doentes mentais. Lara chegou a ser expulsa da escola por não saberem lidar com sua identidade social. Em contrapartida, há também depoimentos comoventes como o do pai da mesma Lara, que passou da objeção ao acolhimento mais amoroso.
O documentário aborda, mas não se concentra no ativismo, nem na exploração de estereótipos ou pormenores da vida trans. Ao contrário, vai ao encontro do que aquelas pessoas têm de mais ponderado e reflexivo em suas posturas. A fala inteligente e a profunda sinceridade que emanam de todas elas tornam um grande prazer conhecê-las.
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