Publico aqui resenhas e pequenas notas que já tinha prontas sobre alguns filmes que entraram nas minhas listas de favoritos de 2021: CRIANÇAS DO SOL, CHARLIE CHAPLIN O GÊNIO DA LIBERDADE, LIMIAR, A MÃO DE DEUS, NÃO OLHE PARA CIMA e O MUNDO DE GLÓRIA.
CRIANÇAS DO SOL
Um sabor de Charles Dickens tempera o iraniano Crianças do Sol (Khorshid). Aos 12 anos, o desenvolto Ali trabalha duro numa oficina e lidera seus três amiguinhos no roubo de pneus para atender ao chefe da gang, o velho Hashem. Sua mãe está internada, o pai está morto, ele aprendeu cedo a só ter a si mesmo. O neo-neorrealismo iraniano mais uma vez mostra suas qualidades, especialmentre no trato com crianças.
Estimulado por uma promessa de Hashem, Ali se compromete a procurar um tesouro enterrado debaixo de um cemitério de Teerã. O único caminho até lá é pelo porão de uma escola próxima, onde Ali e seus companheiros precisam se matricular. A Escola do Sol é uma instituição devotada a encaminhar crianças de rua ou exploradas no trabalho infantil. Assim o filme fecha sua proposta de opor a educação à exploração.
Mas que ninguém espere um conto com moral redonda e mensagem edificante. Majid Majidi, autor dos belíssimos Filhos do Paraíso e A Cor do Paraíso, sabe bem que não existe paraíso na Terra. O garoto Ali só se interessa pela escola na medida em que lhe permite cavar um túnel em busca do seu objetivo.
Crianças do Sol é um thriller energético em que, desde a cena de abertura no estacionamento de um shopping, os meninos estão sempre em perigo de serem apanhados. A existência ou não do tal tesouro, ou sua eventual consistência, está fora da cogitação do determinado mas inocente Ali. A própria escola está sob ameaça de despejo, o que aproxima seu destino ao dos alunos e forja surpreendentes alianças com os responsáveis pela direção. Nasce daí uma das melhores cenas do filme, quando os meninos são incentivados a tomar o prédio como os russos tomaram o Palácio de Inverno em 1917.
Majidi pinta um quadro ao mesmo tempo terno e sombrio de uma infância à deriva, que pode ser salva por alguma habilidade especial ou sucumbir à esperteza de adultos sem escrúpulos. A discriminação de afegãos no Irã é outra anotação importante, encarnada em dois irmãos particularmente comoventes.
O roteiro pode não ser dos mais engenhosos, uma vez que avança por elipses um tanto bruscas e deixa pelo menos uma lacuna importante, que é a personagem da mãe. Em compensação, demonstra o perfeito domínio de realização numa cinematografia madura como a iraniana. No elenco infantil, todo arregimentado entre crianças trabalhadoras, brilham sobremaneira Roohollah Zamani, no papel de Ali, e os irmãos Abolfazl e Shamila Shirzad, como os pequenos afegãos.
>> Veja aqui as plataformas onde assistir a Crianças do Sol.
CHARLIE CHAPLIN, O GÊNIO DA LIBERDADE
Muitos documentários já foram feitos sobre Charles Chaplin, mas esse é especial por várias razões. Charlie Chaplin, o Gênio da Liberdade (Charlie Chaplin, le Génie de la Liberté) é talvez o que mais põe em realce o ativismo político do maior gênio da história do cinema. Um ativismo que se dava nas posições assumidas perante a indústria, no apoio à sindicalização dos trabalhadores do cinema, na defesa de colaboração com a URSS no começo da Guerra Fria em reconhecimento do esforço dos soviéticos na luta contra o nazismo. Ações essas que lhe valeram acusações de comunismo e a consequente perseguição pelo macarthismo.
Mas o filme de Yves Jeuland também deixa claro como esse engajamento se refletia em filmes como Tempos Modernos, O Grande Ditador, Um Rei em Nova York e Monsieur Verdoux. A veia antipolicial já se manifestava desde as comédias da Keystone, no início de sua carreira no cinema. A figura do vagabundo pobretão era, ao mesmo tempo, a galinha dos ovos de ouro de Hollywood e uma sincera simpatia pelos mais pobres, ele que teve uma infância miserável em Londres.
O documentário reconta a vida de Chaplin com trechos de suas primeiríssimas apresentações em music-halls, cenas de seus principais filmes em versões estalando de novas e, principalmente, registros domésticos raríssimos, além de making ofs de alguns filmes. Destaco as tomadas em cores, feitas pelo seu irmão Sidney Chaplin, das filmagens de O Grande Ditador.
A vida pessoal tampouco é deixada de lado. As uniões tumultuadas com atrizes, os problemas com o fisco, o rompimento com os EUA e o assédio mundial da mídia e dos admiradores fazem uim contexto burbulhante que Chaplin enfrentava no mais das vezes com humor, mas eventualmente com muito abatimento.
O texto de narração incessante, na voz de Mathieu Amalric, pode soar excessivo, sobretudo para quem depende das legendas para acompanhá-lo. De qualquer forma, essa abordagem cronológica, articulada e detalhada da trajetória de Chaplin faz justiça à biografia de um homem complexo e um criador extraordinário.
>> Este filme não está disponível no streaming brasileiro.
LIMIAR
A MÃO DE DEUS
Paolo Sorrentino mais uma vez emula Fellini em A MÃO DE DEUS, o seu “Amarcord”. Lá estão o engarrafamento do início de “Oito e Meio”, as mulheres carnudas, a fuga da província para fazer cinema na capital, como em “Roma”. Mas o filme me agradou em cheio. Muito humor politicamente incorreto, valendo-se da época (anos 1980), uma ternura pelos personagens mais caricatos. Enfim, o sabor das velhas comédias familiares italianas que há tempos eu não via. Podia ser menos “mensageiro” na sequência com Antonio Capuano no final, mas, porca miseria, o filme é una piccola bellezza.
>> A Mão de Deus está na Netflix.
NÃO OLHE PARA CIMA
Precisamos conversar sobre NÃO OLHE PARA CIMA. Parte da crítica vem tratando o hit da Netflix como se estivesse pisando em ovos. Afinal, não é um filme sutil, nem especialmente “inteligente”, nem artístico como era “Melancolia”, por exemplo, sobre tema semelhante. Mas, puxa vida, é uma sátira devastadora à mentalidade dominante em países como os EUA de Trump e o Brasil de Bestanaro. E não fica só nas figuras de proa. Demole a plebe negacionista, a banalização de tudo pela mídia e as redes sociais, o estrelato tecnológico e também o científico. É a radiografia bem contrastada da imbecilidade que grassa no mundo das fake news e do fascismo popular hoje em voga, aquele que usa o termo “liberdade” como pretexto e o apelo às armas como fetiche. Conhecemos bem tudo isso, mas dá gosto ver as coisas desnaturalizadas e concentradas num filme. Quer se divertir com o fim do mundo? Esse é o seu programa. Só repito aqui o que disse o colega Luiz Zanin: “O problema de ‘Não Olhe para Cima’ é que os personagens do filme são menos caricatos que os da vida real.”
O MUNDO DE GLÓRIA
Robert Guédiguian é um de meus cineastas favoritos. Alguém que escreve sucessivos filmes para sua pequena “família” cinematográfica de Marselha. Sempre personagens proletários ou de classe média baixa às voltas com a sobrevivência material e espiritual numa cidade áspera e violenta, mas que eles amam. GLORIA MUNDI é assim: uma faxineira, um ex-presidiário autor de haicais, um motorista de ônibus e um de Uber, um casal de arrivistas – todos eles lidando com suas fraquezas e contradições enquanto o bebê Gloria se soma à família. A música de Ravel embala a ternura e a vivacidade com que o cineasta os trata, entre o naturalismo e um esboço de poesia. Talvez role um certo maniqueísmo no retrato do casalzinho sem escrúpulos, mas o filme é uma pequena joia.
>> Está no Now, Youtube Movies, Google Play, Vivo Play, Telecine Play e Apple TV com o título brasileiro imbecil de “O Mundo de Glória”, quando na verdade deveria ser “A Glória do Mundo” (da expressão “sic transit gloria mundi”, ou seja, “a gloria do mundo é transitória”). Seria o mesmo que traduzir “mapa mundi” por “o mundo do mapa”.
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