Coutinho no jogo da ficção

Neste sábado, 3/6, eu e Ruy Gardnier vamos conversar com a plateia da Cinemateca do MAM-RJ após a sessão dos filmes O Pacto e Faustão, de Eduardo Coutinho, que começa às 18h30 no escopo da mostra Coutinho 90 Anos. O Pacto é um média-metragem que integrava o longa em episódios ABC do Amor, coprodução de Argentina, Brasil e Chile. Faustão foi uma experiência de Coutinho no filme de cangaço, inspirado também no personagem Falstaff da tragédia Henrique IV, de Shakespeare.

Sobre esses dois filmes, transcrevo aqui alguns trechos do meu livro Sete Faces de Eduardo Coutinho, onde analiso também a fase ficcional da carreira do cineasta.

O Pacto

Os três episódios de ABC do amor têm em comum a abordagem das relações amorosas no contexto da classe média às vésperas da revolução sexual. O peso imenso da instituição familiar ainda sufocava os jovens e suscitava um desejo de libertação que só parecia se realizar por meio de rupturas drásticas (o rompimento de um noivado, a crise ou mesmo a morte, conforme desenvolvido em cada episódio).

O pacto não tem a sofisticação formal de Noche terrible, mas tampouco sofre do truncamento narrativo de Mundo magico. Dos três, é o menos ambicioso em matéria de construção cinematográfica, embora resulte o mais efetivo como narrativa. A câmera na mão de Dib Lutfi (o célebre cinegrafista de Terra em transe, O desafio e um dos autênticos criadores da estética do Cinema Novo) tem uma qualidade fluida e absorve de maneira expressiva a luz natural.

Coutinho mostra a aproximação do casal com requintes de ironia cenográfica. Os encontros furtivos se dão num bonde, no Jardim Zoológico, num elevador, num cinema onde passa Suplício de uma saudade (1955), um dos melodramas que arrancou lágrimas de Coutinho em sua mocidade… e finalmente numa igreja, onde trocam juras de amor e Mário aceita a proposta inusitada de Inês: ela lhe concederia uma noite de amor desde que ele aceitasse um pacto de envenenamento a dois. Mais que prisioneira da ordem paterna, Inês é refém de uma mitomania romântica extrema, que se expressa na admiração por pactos de morte veiculados em jornais.

O retrato da vida suburbana estende-se à faixa sonora, que contém alguns hits da Jovem Guarda. “Ternura”, na voz de Wanderléa, se tornaria uma canção mítica no cinema de Coutinho, reaparecendo, a seu pedido, em dois filmes futuros: As canções e Moscou. A inclusão de “Quero que vá tudo pro inferno” antecipa o desejo do cineasta de fazer um filme sobre a presença de canções de Roberto Carlos na vida das pessoas. Houve também uma preocupação com o ajustamento da linguagem às gírias do momento. Mas são as imagens que falam mais alto. As ruas calmas da Zona Norte carioca, com seus casarões vetustos, contrastam com o ambiente buliçoso da Zona Sul, que dominava o cinema urbano da época e estaria bem representado em Garota de Ipanema, surgido um ano depois. Nenhuma antologia do cinema carioca poderá prescindir da sequência em que Mário e Inês atravessam vários bairros em uma lambreta, a caminho do hotel onde se dará o desfecho do filme. Eles passam pela região do estádio do Maracanã, vencem o antigo Elevado da Perimetral (que ligava as zonas Norte e Sul da cidade) e cruzam os Arcos da Lapa, num percurso simbólico de evasão do mundo fechado do subúrbio.

O pacto marcou o início efetivo da carreira do diretor Eduardo Coutinho, pouco afetado pela agenda temática e formal do Cinema Novo. Ao mesmo tempo, mantinha-se ainda muito distante do que viria a se tornar a partir de sua futura opção pelo documentário. O que vemos aqui é um diretor em busca de uma linguagem clássica de ficção (campos e contracampos, alternância de planos gerais e planos próximos, interpretações naturalistas) que fosse ao mesmo tempo leve e aberta à interação com as locações. Um pacto a ser rompido em breve.

Faustão

O título é uma aproximação lusófona do personagem Falstaff, ao qual Orson Welles havia dedicado um filme, Falstaff ou Chimes at Midnight, em 1966. Henrique Pereira, filho de “coronel” que vai parar no cangaço, corresponde ao rei Henrique IV. O contexto é o dos conflitos entre famílias nordestinas cuja rivalidade se estendeu geração após geração, através de dívidas de sangue. Tema que, por sinal, o próprio Coutinho abordaria em dois programas do Globo Repórter e chegaria ao cinema brasileiro do século XXI com Abril despedaçado (2001), de Walter Salles.

Rodado no distrito de Fazenda Nova, município pernambucano de Brejo da Madre de Deus, o filme começa e termina sob o signo do elogio à lealdade familiar. Na abertura, lemos alguns versos, atribuídos a Lampião, com votos de fidelidade ao “mano Ferreirinha”. Na última sequência, veremos o enfrentamento doloroso entre um homem que não quer matar e outro que faz questão de ser morto por ele. Faustino Guabiraba, vulgo Faustão, e Henrique Pereira estão condenados a pertencer a mundos adversários, mas por um certo tempo se iludem do contrário.

O tema da lealdade impossível num contexto de diferenças de classe e sangue – tema subjacente universo ficcional de Shakespeare – torna-se aqui assunto central. Chegará o dia em que os laços sanguíneos cobrarão seu preço, e Henrique herdará a missão de combater os cangaceiros. O quadro da tragédia estará formado.

Como todo cangaceiro, Faustão encarna um tipo a meio caminho entre o bem e o mal. Herói e anti-herói ao mesmo tempo, incorpora uma visão macro da realidade do sertão nordestino. Sabe que as lutas do campo não são a única praga a se abater sobre o sertanejo. “Não é o homem. É o sertão”, ele diz. “É a volante, é a seca, é a sezão…” Euclides da Cunha, autor do clássico romance-reportagem Os sertões, não seria capaz de síntese mais feliz.

O sertão fotografado pelas lentes de José Medeiros (um dos mais célebres cultores da luz realista para criar uma estética tipicamente brasileira) não tinha os excessos cromáticos de outros filmes de cangaço. Suas cores são mais frias, buscando as tonalidades da terra seca e da vegetação agreste. Mas toques de estetização aparecem nos enquadramentos que valorizam mais a composição do que a espontaneidade. Há uma certa busca da “bela imagem”, com a disposição de pés de mandacaru em primeiro plano, marcações um tanto rígidas e movimentações humanas monolíticas dentro do quadro. Daí o cotidiano dos cangaceiros parecer eficientemente arrumado “para a câmera”. Como um western em câmera lenta.

Nota: Também no sábado, 3/5, às 16h, os organizadores e alguns autores do novo livro sobre Cabra Marcado para Morrer, editado pela Faculdade de Educação da USP, farão uma live neste link do Youtube.

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