Jonathas e a arte do deslocamento

Na Bienal de Veneza de 2022, o pavilhão brasileiro acolhia os visitantes por uma orelha mas, em certos momentos, também os expulsava pela outra. A exposição partia de mais de 250 expressões populares que são figuras de linguagem baseadas no corpo, muitas das quais inspiravam esculturas, fotografias e uma videoinstalação. A entrada e a saída, por exemplo, representavam “entrar por um ouvido e sair pelo outro”. Uma das obras, que dava título ao pavilhão, era Com o Coração Saindo pela Boca, um coração inflável que, de tempos em tempos, emergia de uma boca no teto e progressivamente ocupava quase todo o espaço da sala. O público era obrigado a negociar sua posição ou mesmo deixar o recinto.

Quem assinava a representação brasileira era Jonathas de Andrade, alagoano formado e residente em Recife, que hoje é um dos artistas brasileiros mais celebrados nacional e internacionalmente. Seus trabalhos já foram expostos em quatro continentes, incluindo individuais nos museus de arte contemporânea de Chicago, Montreal e Lisboa, além do New Museum de Nova York. Aos 41 anos, é um exemplo de precocidade artística. “O trabalho dele, muito cedo, já alcançou uma maturidade temática, política e de linguagem, com muitas camadas, que conseguem apresentar discursos, contradiscursos e ambiguidades da identidade brasileira de forma muito própria”, avaliou Ana Maria Maia, curadora-chefe da Pinacoteca de São Paulo. Por ali passou uma retrospectiva panorâmica de seu trabalho no ano passado. Veja um vídeo sobre essa exposição.

Jonathas cria num cruzamento frequente da arte com a etnografia e em estreita colaboração com personagens populares. Os suportes são variados: fotografia, vídeo, performance, instalações, esculturas e ações de rua. O site do artista, fartamente ilustrado, fornece uma ideia dessa diversidade.

Concentro-me aqui nos trabalhos em vídeo, que operam na intercessão entre documentário, etnografia, ficção e performance. Diante da pluralidade de temas e dispositivos, prefiro destacar o deslocamento como fator preponderante. Deslocamento de sentidos e perspectivas em relação ao que comumente relacionamos a cada objeto enfocado. Não tanto na chave dadaísta, como fez Duchamp com o mictório A Fonte, mas com o objetivo de tensionar conteúdos antropológicos e históricos.

Uma de seus obras mais celebradas é o filme O Peixe, protagonizado por dez pescadores alagoanos. Com fotografia de Pedro Urano, eles são vistos lançando suas redes em rios e mangues. Concluída a pesca, foram convidados a abraçar um pirarucu, um tambaqui ou uma tilápia ainda vivos. O deslocamento aqui acontece entre o ato corriqueiro de pescar, quando o peixe é simples objeto de captura e consumo, e o gesto de ternura do pescador para com sua presa. Os homens acariciam o animal contra o peito e o rosto enquanto o peixe agoniza e eventualmente se esbate. Nós, espectadores, somos testemunhas de um ato extremamente ambíguo e desconcertante, pois envolve carinho, tortura e um certo erotismo. Algoz e vítima reunidos num ritual de amor e morte. O Peixe já foi exibido no New Museum de Nova York e pode ser visto numa versão de 23 minutos aqui.

A atenção de Jonathas nesse filme se volta também para os corpos dos pescadores, quase todos de belo físico. O olhar da câmera e do espectador é também submetido a essa proposta de deslocamento: a pesca não é mais vista como um trabalho de sobrevivência, mas como uma atividade corporal, uma microcoreografia em certa medida erótica.

O corpo masculino é objeto de outros trabalhos de Jonathas que não envolvem cinema. Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste é um exercício de imaginação em torno dos corpos de homens nordestinos. Em Suar a Camisa, ele expõe manequins vestidos com camisas compradas de trabalhadores à saída do expediente. Ideia semelhante norteia Achados e Perdidos, coleção de pélvis masculinas esculpidas por artesãos de Tracunhaém (PE) e vestidas com sungas esquecidas em clubes de natação de Recife, recolhidas ao longo de dez anos. Em residência na Fundação Darat Al Funun de Amã, na Jordânia, Jonathas especulou sobre a imagem de Cristo em Procurando Jesus. O público era convidado a votar numa determinada foto entre 20 tiradas de homens comuns que poderiam encarnar um Jesus legitimamente árabe.

Olho da Rua é um vídeo performático feito em colaboração com pessoas em situação de rua de Recife. Personagens usualmente tratados como objeto de documentários sobre realidade urbana e precarização da vida são instados aqui a resgatar seu potencial de vaidade e alegria. Em oito atos, cerca de 100 pessoas se apreciam diante de um espelho, preparam um banquete na praça, enchem o bucho, dançam efusivamente, repousam e fazem uma roda para criticar o então presidente Bolsonaro. A profusão de closes põe em evidência os rostos e a “troca de olhares” entre os personagens e a câmera, numa relação um tanto narcísica. No ato final, eles encaram a lente e gesticulam numa espécie de despedida polimorfa. Clique aqui para ver um fragmento desse vídeo.

As funções do close são, por outro lado, radicalmente desconstruídas em 4.000 Disparos, fluxo veloz de rostos em constante deslocamento por ruas de Buenos Aires, sonorizado com ruídos pulsáteis. Os efeitos de individualização e aproximação do close dão lugar a uma correnteza que se avizinha do morphing e torna impossível a identificação dos rostos. A noção de disparo também associa o cinema ao tiro, na medida em que cada pessoa que passa pela tela é instantaneamente “morta” pela imagem seguinte. Um trecho de quatro minutos está disponibilizado aqui. Em exposições, o material completo de 60 minutos é exibido em looping.

O Levante é classificado pelo autor como um filme-pretexto. Filmar era justificativa para promover a “Primeira Corrida de Carroças no Centro da Cidade do Recife”. As carroças puxadas a cavalo são resquícios de um Pernambuco rural que ainda perduram na capital, no lusco-fusco da ilegalidade. Com a iniciativa de organizar a corrida, Jonathas quis deslocar essa atividade marginal para o centro das atenções. O evento extraordinário ocorreu em 5 de agosto de 2012. Seu registro, acompanhado de um repente de Joãozinho Aboiador e uma narração escrita pelo autor, pode ser visto em baixa qualidade aqui. Um pequeno trecho em melhor resolução está aqui.

Outra parceria inusitada de Jonathas com personagens populares é o média-metragem Jogos Dirigidos, gravado na comunidade de Várzea Queimada, sertão do Piauí. Ali vivem muitos surdos-mudos, que, à falta de recursos para aprender a Libras oficial, desenvolveram uma linguagem própria baseada em gestos e expressões corporais. Esses recursos, habitualmente usados na comunicação cotidiana, foram deslocados no filme para a condição de espetáculo. Um grupo de 18 pessoas se revezam entre o “palco” ao ar livre e a plateia, narrando fatos de seu dia-a-dia. Os “textos” vão sendo ora traduzidos, ora apenas segmentados em expressões individualizadas.

Os homens e mulheres se convertem em atores, um tanto como num filme de Eduardo Coutinho que fosse realizado com surdos-mudos. A ausência da fala oral é compensada por um “excesso” de expressividade que os emociona e diverte. A montagem de Tita e Fábio Costa Menezes explora muito bem o jogo entre performers e assistentes, assim como a seleção de momentos em que a imagem congela as expressões traduzidas. A fotografia de Ivo Lopes Araújo é primorosa, sobretudo nas dinâmicas de aquecimento e formação de comunidade estimuladas pelo diretor. Veja o trailer de Jogos Dirigidos.

Uma das obras mais contundentes de Jonathas de Andrade, apesar da sua forma sutil, é O Caseiro. Nesse curta-metragem, a tela é dividida em duas. À esquerda vemos o curta O Mestre de Apipucos, de Joaquim Pedro de Andrade, que resumia um dia típico do sociólogo Gilberto Freyre em sua casa recifense em 1959: o intelectual aposentado em poses senhoriais, servido por um empregado negro, confraternizando com a esposa e a cozinheira, lendo poesia em sua rede, repousando na praia e usufruindo do conforto de uma vida burguesa.

Na parte da direita, Jonathas filmou o caseiro que cuidava da casa em 2016, vivendo situações paralelas às de Freyre em enquadramentos semelhantes. As diferenças, porém, silenciosamente pontuam questões de classe, raça, trabalho e hábitos alimentares, além das marcas da passagem do tempo no imóvel. O escritor que consolidou uma ideia de conciliação e mestiçagem na formação social brasileira, atualmente muito criticada, aparece aqui como uma figuração do passado, anacrônica sob vários aspectos. Essa leitura é sugerida sem qualquer discurso além da confrontação das imagens simultâneas. Um fragmento de O Caseiro pode ser visto aqui.

As obras audiovisuais de Jonathas de Andrade, em sua maioria financiadas por museus e instituições culturais, pertencem aos respectivos acervos, daí não estarem disponíveis integralmente na internet. É uma pena, pois ajudariam a tornar mais popular um artista de primeira linha que enobrece o popular.

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