Escolares: Maria no Brasil, Minata no Japão

EU SOU MARIA e MONSTER

Afirmação pela diferença

Como sugere o título, Eu Sou Maria é uma história de afirmação. A adolescente Priscila Maria da Silva não gosta que a chamem pelo primeiro nome. Ela é marrenta e tem dois grandes desejos: frequentar bailes funk na sua comunidade em São Gonçalo (RJ) e estudar num “colégio forte”. Boa em redação, por causa disso ganha uma bolsa em escola da Zona Sul carioca e, junto com mais dois bolsistas, vai enfrentar a discriminação dos branquinhos da elite.

O longa de Clara Linhart trabalha dois mundos aparentemente inconciliáveis e não foge de alguns estereótipos de representação. Mas o roteiro de Sonia Rodrigues, baseado em seu romance juvenil homônimo que adapta o mito dos 12 trabalhos de Hércules, consegue abrir brechas para alguma complexidade. Veja-se, por exemplo, a diferença entre a prudência de Maria e a irreflexão de seu amigo Zilton, também bolsista. Diante dos preconceitos dos colegas em relação a bolsistas, ele primeiro tenta se enturmar bancando o exótico da periferia e depois se rebela. Maria, no entanto, resiste à falsa igualdade, compreende o jogo e se impõe justamente pela diferença.

O fato de Maria ser negra é importante, mas não decisivo na trama, uma vez que os outros bolsistas são brancos e igualmente importunados. A figura dos pais também ganha nuances interessantes, principalmente em função de preconceitos de parte a parte que se apresentam dissimulados como cuidado para com os filhos.

Eu Sou Maria deve falar de perto à plateia adolescente com esse inventário de observações no fictício Colégio Ascensão (social, leia-se). A insolência dos alunos, o desrespeito para com os professores, o bullying e as intrigas em tempo de internet formam um retrato do que acontece hoje em tantas escolas privadas. Mas há lugar também para a amizade e o romance, em contraste com a violência da alternativa mais à mão para os jovens pobres: o tráfico, a violência e a morte.

A direção de Clara Linhart é objetiva e sem adornos. Os diálogos quase sempre fluem muito bem, e o elenco dá conta do recado com legitimidade. Vale destacar o trabalho coletivo com a garotada que interpreta os alunos. Elas e eles são a alma do filme.

>> Eu Sou Maria está nos cinemas.



Rashomonstro

Elaborando mais uma vez sobre o mundo secreto de crianças em famílias fraturadas, Hirokazu Kore-eda faz em Monster um de seus filmes mais retorcidos e barrocos do ponto de vista narrativo. A inspiração remete a Rashomon com suas abordagens consecutivas dos fatos a partir de diferentes perspectivas. A pergunta “onde está a verdade” é substituída por “quem é o monstro”, que perpassa o filme inteiro.

Tudo principia na noite em que um incêndio acontece numa cidade japonesa. Saori (Sakura Ando) percebe comportamentos estranhos e um machucado no filho adolescente, Minato (Soya Kurokawa). O menino, deprimido por causa da morte do pai, afirma que seu cérebro foi trocado pelo de um porco. Seu professor teria dito isso.

Saori vai tirar satisfações da escola e ouve desculpas rotineiras e evasivas. O mistério está posto, e o filme subitamente retrocede à noite do incêndio para que vejamos o que se passou do ponto de vista do professor Hori (Eita Nagayama). Ganha corpo, então, um quarto personagem, o colega de classe Yori (Hinata Hiiragi), garoto mais novo que é vítima de bullying. As dúvidas crescem a respeito de quem agrediu quem, até que uma terceira linha narrativa se ocupa da perspectiva do próprio Minato.

Só então o espectador começa a se dar conta de estar vendo uma construção emaranhada de fantasias e pulsões homoafetivas infantis em paralelo a mentiras e culpas de adultos. Não importa saber quem é o monstro, afinal, uma vez que o foco se desloca para a necessidade de superar traumas pela via de um certo renascimento metafórico.

O ritualismo da vida cotidiana japonesa coloca tudo em banho-maria, à exceção das horas em que o excesso de pathos faz os personagens gritarem e se movimentarem dramaticamente – uma tradição da mise-en-scène nipônica. Em comparação com os melhores filmes do diretor (Depois da Vida, Ninguém Pode Saber, Pais e Filhos), Monster me pareceu menos interessante como argumento e mais artificioso como roteiro. O júri de Cannes, porém, teve outra avaliação, dando-lhe o prêmio de melhor roteiro (de Yûji Sakamoto). Mas foi a montagem de Kore-eda a principal responsável pela estrutura que exige do espectador redobrada atenção para os detalhes temporais. E, a meu ver, não fornece recompensa à altura.

A trilha musical, usada com muita parcimônia, foi a última do grande Ryuichi Sakamoto, falecido em março deste ano.

>> Monster está nos cinemas.  

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