O brilho fátuo dos vagalumes

O MELHOR ESTÁ POR VIR 

por Sérgio Moriconi

Um dos mais importantes realizadores do cinema contemporâneo e do grande cinema italiano do pós-pós-neorrealismo, Nanni Moretti faz em O Melhor Está Por Vir uma reafirmação de sua crença no pensamento progressista de esquerda, e no Partido Comunista Italiano, isso através de um filme em que mais uma vez combina todo tipo de linguagem. Mas desta vez ele mais do que combina. Moretti embaralha diário, filme de época, ensaio metalinguístico e ainda a fabulação de uma outra ficção que ele imagina. Um sagaz bololô. É um filme dentro de um filme dentro de outro filme, numa composição complexa – no caso dele quase anárquica – que o teórico de cinema e semiólogo francês Christian Metz chamou de “construção em abismos”. Num longo texto, Metz faz referência especialmente a 8 e Meio, obra-prima do mestre Federico Fellini. Neste novo Moretti, as referências são inúmeras, desde o curiosíssimo O Nadador, de Frank Perry, com Burt Lancaster como protagonista, até Não Matarás, de Kieslowski.

8 e meio de Fellini é uma óbvia referência no enredo de O Melhor Está Por Vir e também em cenas específicas, como a que alude ao surrealista sonho inicial de 8 e Meio, onde Marcello Mastroianni, aprisionado em seu carro num engarrafamento, observa angustiado os ocupantes dos outros carros bloqueados dentro de um túnel. Neste último filme de Moretti, cujo título em italiano é Il sol dell’avvenire (O Sol do Futuro), Giovanni, o diretor/protagonista em crise, também está num engarrafamento e reflete sobre sua vida afetiva, trabalho, mundo, valores, tudo enfim, num período de transição histórica em que Georgia Meloni assume como primeira-ministra o governo na Itália. Amarcord também é permanentemente aludido nas sequências do circo húngaro que chega a uma pequena comuna italiana para apresentações e é apadrinhado pelo Partido Comunista do país. O contexto é a invasão da União Soviética na Hungria. Na representação ficcional de O Melhor Está Por Vir, o PCI presta sua solidariedade ao povo húngaro, em protesto contra as formas totalitárias de comunismo. O ano é 1956.

Neste filme de época dirigido por Giovanni, Moretti (plus Giovanni) declara sua crença nos princípios políticos e sociais do “comunismo à italiana”. Nos termos deles, um comunismo democrático, não totalitário, em suma, não “stalinista”. Diz isso numa circunstância histórica contemporânea em que as esquerdas sofrem ataques de todo tipo de uma direita, em muitos casos “ultra”, muito bem orquestrada mundialmente. Moretti faz sem constrangimento nem vergonha mais uma de suas declarações de fé no ideário de esquerda e na diversidade de pensamento. Evoca mnemosine, a deusa grega da memória, na jocosa cena em que explica a um jovem que os “comunistas” existem fora da Rússia. “Eles existem na Itália!!”, diz um estupefato Moretti para assombro de seu interlocutor. Só para esclarecer, dissolvido em 1991, o PCI ressurgiu em vários avatares e existe até hoje. Evoca mnemosine como uma forma de evitar o desaparecimento de idéias e tradições, sejam elas políticas, sociais e mesmo cinematográficas.

Evoca o “brilho dos vagalumes”, fazendo aqui referência ao célebre texto de Pasolini, contido em Escritos Corsários. Pasolini manifestava ali sua angústia em relação ao – segundo ele – deletério processo de homogeneização cultural, processo que apaga diferenças, tradições, princípios, sentidos e arquétipos identitários. O brilho fugaz dos vagalumes, seus lampejos (lucciole) mágicos e efêmeros, metaforizariam a arte e tudo aquilo que vai contra a uniformização engendrada pelo processo mercantil da “globalização”, termo, aliás, que não existia na época. Pasolini escreveu esse seu artigo sobre o desaparecimento dos vagalumes, ou pirilampos, nos anos 1970, época do milagre econômico italiano que transformava tudo em mercadoria, resultando – ainda nos seus termos – em uma ditadura industrial e consumista. Para Pasolini, os lampejos intermitentes dos pirilampos seriam uma alegoria da arte e da cultura, antídotos contra o pensamento unidimensional.

No filme, essa ideia está expressa na picaresca cena em que representantes da Netflix tentam convencer Giovanni, alter ego de Moretti, a fazer o seu filme nos moldes dramatúrgicos de um cinema globalizado, adequado para ser desfrutado igualmente em quase duas centenas de países (190!). Mas – eles ponderam – “a Itália sequer tem um star system”, o que não é verdade. A Itália já teve, e tem, um star system, não na proporção de um blockbuster global e sim numa escala nacional e mesmo internacional, de menor proporção, evidentemente. A indústria do filme pode até absorver um cinema “autárquico” como o de Moretti, fazendo aqui alusão ao título de um dos primeiros filmes do diretor, Io Sono Un Autarchico, de 1976. Moretti é de fato um autárquico. A indústria também pode absorver filmes de um autárquico, e de final pessimista, como bem demonstra a sequência com produtores coreanos indiferentes ao desfecho melancólico imaginado por Moretti para o filme de época que inclui o circo húngaro.

O Melhor Está Por Vir é ainda uma reflexão de Moretti sobre a nossa época, sobre o cinema, o velho cinema projetado nas salas de exibição em contraposição ao streaming, às plataformas que levam a uma uniformização dos modelos de produção e realização. E ainda sobre as várias formas de recepção das obras cinematográficas, reflexão materializada na passagem em que todos os envolvidos na produção do filme de Giovanni dão freneticamente seus palpites sobre qual deve ser o seu final. Moretti critica aqui a pretensa onipotência do diretor. O trecho é espirituoso e dá a deixa para o recurso outras vezes utilizado por ele para fugir de uma certa melancolia nostálgica, no caso deste último filme, o ocaso do espírito progressista numa época em que viceja o ideário econômico neoliberal. O escape aqui é o musical baseado em grandes canções do repertório italiano.

Moretti havia feito o mesmo em Aprile. Lembram do pasticchero italiano, o confeiteiro, vivido pelo onipresente ator Silvio Orlando? Em O Melhor Está Por Vir ele é o jornalista do L’Unitá que, junto com Vera (Barbora Bobulova), militante do PCI, são os mais empenhados na incorporação do circo húngaro na ficção de época. Em ambos os filmes, o musical é o extemporâneo recurso para chutar o baixo astral da trama principal. O desencanto de Moretti com a situação das esquerdas em seu país é um dos principais motivos desse baixo astral e do impulso de Moretti para realizar O Melhor Está Por Vir. O desencanto, já foi dito, também inclui o cinema e o seu próprio país, a Itália. No fim das contas, o filme – ou os filmes, se quiserem – pode ser várias coisas, inclusive um filme de amor. Pelo menos é o que sugere Paola (Margherita Buy), esposa de Giovanni na ficção de época.

O desencanto (e perplexidade) de Moretti com a Itália, numa clara época histórica de transição, está colocado em vários outros de seus filmes. A questão neofascista do ódio aos imigrantes, a psicopatia social, estão muito bem postas em Três Andares, seu filme anterior. Ali Moretti reflete sobre como um país de emigrantes se transforma num país que (boa parte pelo menos) refuta os imigrantes. A ideia está divinamente colocada na alegoria dos indivíduos que dançam um tango triste nas ruas de Roma. São os fantasmas dos ítalo-argentinos retornados. O escritor Ernesto Sabato dizia que o tango “é um pensamento triste que se dança”. Jorge Luis Borges refuta o argumento de que o tango, originalmente varonil e feliz, foi-se entristecendo por influência da imigração italiana no bairro portenho de La Boca. Vai saber! O mesmo se pode dizer de O Melhor Está Por Vir. No cinema “transgênero” de Nanni Moretti, o desfecho dramático, assim como “o sol do futuro”, pode nascer das mais insuspeitadas maneiras. Pode-se até mesmo esperar o melhor, quem sabe ao som de uma bela canção de Franco Battiato.

Sérgio Moriconi

>> Clique aqui para ler a resenha deste filme por Carlos Alberto Mattos.

Deixe um comentário