Notas sobre PETER VON KANT e A SORTE GRANDE, dois belos filmes no streaming.
Lágrimas amargas no rosto de um homem
Um close dos olhos de Rainer Fassbinder introduz os créditos iniciais de Peter Von Kant. Logo em seguida conhecemos Peter, um já famoso diretor de cinema alemão em 1972. Na pele do corpulento ator Denis Ménochet, Peter é naturalmente uma referência ao próprio Fassbinder. O filme de François Ozon é um tributo a um de seus mestres, uma releitura da célebre peça As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, escrita e depois filmada por Fassbinder justamente em 1972 (veja versão legendada no Youtube).
No original, Petra era uma estilista arrogante que mantinha uma relação sadomasoquista com sua assistente e se apaixonava por uma jovem modelo, sofrendo com a rejeição. Já o Peter de Ozon é esse cineasta que trata o assistente como um cachorro e cai de amores por Amir (Khalil Ben Gharbia), rapaz imigrante que ele traz para o seu apartamento e lança como ator. Amir corresponde, na vida real, ao ator marroquino El Hedi Ben Salem, que teve um longo e conturbado romance com Fassbinder. O personagem Amir também carrega o sobrenome Ben Salem.
A intertextualidade vai além. Isabelle Adjani faz a atriz e cantora Sidonie, musa do cinema e amiga íntima de Peter, assim como Hanna Schygulla foi de Fassbinder. E a própria Hanna, que fazia a jovem amante de Petra, aparece agora como a mãe de Peter. Muitos diálogos são reproduzidos literalmente do filme alemão. Embora não haja aqui nenhuma estilista, a direção de arte providenciou alguns manequins no apartamento de Peter para aludir a Petra.
Afora todo o jogo de espelhos entre Ozon e Fassbinder, Peter Von Kant decalca também o tom melodramático de Petra. Estamos no reino do patético – aquilo que nos faz rir ou nos envergonhar das manifestações exacerbadas de sofrimento de quem não conhecemos ou não existe no plano da realidade. A fulminante paixão pelo manipulador Amir vai transformar o soberbo Peter num farrapo humano descalibrado por álcool, cocaína e lágrimas. É, sem dúvida, uma visão do contexto emocional gay dos anos 1970, mas quem garante que aqueles sentimentos não sejam atemporais?
Em Peter como em Petra, estão na berlinda as fragilidades do ser amoroso, a confusão entre amor e “aquisição” da pessoa amada, a ilusão de controle da nossa liberdade, bem como o lugar da família no turbilhão de afetos desencadeado por uma paixão.
Ozon providencia uma versão mais sexualizada e um final mais áspero para a relação entre Peter e seu criado silente (Stefan Crepon). Isabelle Adjani imprime uma irônica afetação ao papel de Sidonie, enfatizando o olhar crítico sobre as celebridades. Denis Ménochet está minucioso nas reações e na performance sedutora de Peter, culminando com o auge do patético na cena em que Peter se volta contra a mãe, a filha e a melhor amiga. Uma encarnação notável.
Um pouco menos teatral e quase tão elegante formalmente quanto o filme de Fassbinder, Petra Von Kant tem a vitalidade de um cineasta que herdou a chama do cinema queer e a conduz com garbo.
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Uma atuação magistral
Uma grande celeuma cercou a indicação de Andrea Riseborough ao Oscar de melhor atriz no ano passado pelo drama A Sorte Grande (To Leslie). A produção (da qual faz parte a própria Andrea como produtora executiva) usou na campanha recursos de redes sociais incompatíveis com as regras da Academia. Mesmo assim, foi indicada. Mas, em matéria de qualidade de atuação, não vejo nenhum demérito, muito pelo contrário. A composição da moça no papel de Leslie, mãe solteira que esbanja rapidamente a grana de um prêmio de loteria e acaba na sarjeta, alcoólatra e rejeitada por todos, é simplesmente magistral. Um modelo de interpretação radical, de corpo inteiro, que pontua cada reação e emoção desencontrada da personagem.
É uma história de redenção, um tanto facilitada pelo surgimento de uma espécie de anjo no caminho de Leslie e pela ênfase no potencial de perdão que reside por trás de todo ressentimento. Um feel good movie, afinal de contas, depois de nos castigar um tanto com as fraquezas e desacertos da protagonista. Por mais que aquele realismo possa parecer convencional, o filme nos conquista pela imprevisibilidade dos passos de Leslie e pelo cuidado que nos surpreendemos tendo com ela. E para isso a performance intensa de Andrea é o veículo perfeito.
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