Elas se amam, mas…

Notas sobre os filmes SEM CORAÇÃO e NÉVOA PRATEADA

Romantismo adolescente e realismo mágico

Pela terceira vez, Nara Normande elabora reminiscências de sua infância e adolescência na localidade praiana de Guaxuma, em Alagoas. Primeiro foi com o curta Sem Coração (2014), codirigido com o pernambucano Tião. Em 2018, veio o belíssimo curta de animação Guaxuma, disponível aqui. A versão longa de Sem Coração, lançada agora depois de ser exibida no Festival de Veneza, parece uma extensão e uma variação dos dois curtas. A direção é novamente compartilhada por Nara e Tião.

O tema central é a descoberta de um amor arriscado (“tenho medo de viver uma coisa que nunca vivi”) por parte do alterego da diretora, a menina Tamara (Maya de Vicq). Ela vive com a mãe (Maeve Jinkings) e passa seu tempo de férias em companhia de um grupo heterogêneo de amigos e amigas antes de se mudar para Brasília, onde prosseguirá nos estudos. A garotada se diverte invadindo casas de veraneio para comer, beber, fazer pequenos furtos e assistir a vídeos pornô. Entre eles há o menino gay que sofre violência homofóbica e o delinquente de carisma e tragicidade pasolinianos.

Um tênue plot principal tem início quando Tamara parece ter o seu primeiro interesse amoroso. O alvo é Duda (Eduarda Samara), menina pobre e negra, filha de pescador, a quem chamam de “Sem Coração” devido a uma cicatriz que ela tem no peito. A época é 1996, conforme assinalado pela notícia da morte de PC Farias, ícone de um período em que Alagoas carimbou a política brasileira.

O filme deambula tanto quanto seus personagens entre blocos descontínuos de uma narrativa sem amarras aparentes. A sensualidade da paisagem tropical impregna os corpos e assume grande protagonismo na fotografia de Evgenia Alexandrova. A atmosfera é perversamente romântica e pontuada por cintilações de realismo mágico. Uma baleia encalhada, por exemplo, pode ser metáfora (felliniana?) de um amor condenado por questões de classe, de gênero e de circunstâncias do destino. Já o mar e os peixes podem simbolizar a fluidez dos afetos na adolescência. É particularmente bonita a sequência do primeiro toque entre Tamara e “Sem Coração” em meio a uma pescaria noturna que se transfigura em fantasmagoria luminosa.

O filme sofre um pouco pela irregularidade do elenco e pela forma muito rarefeita com que descreve eventos e emoções. Ainda assim, tem um discreto charme que nos mantém ligados todo o tempo. A coprodução franco-ítalo-brasileira tem participação da Cinemascópio de Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux.

>> Sem Coração está nos cinemas.

Trauma no corpo e realismo proletário

Viky Knight tinha oito anos de idade quando um incêndio consumiu o pub em cima do qual ela morava e as chamas a atingiram em cheio. Ela saiu traumatizada e com o corpo severamente marcado pelas queimaduras. Passou a trabalhar como enfermeira no mesmo hospital onde fora tratada. Quando foi convidada a trabalhar no cinema, achava que só serviria para filmes de terror. Acabou estreando em 2019 no papel de uma mulher atacada com ácido por um ex-namorado em Dirty God. A mesma diretora Sacha Polak a escalou de novo em Névoa Prateada (Silver Haze), dessa vez com uma história baseada em sua experiência pessoal.

No filme, Vicky é Franky, enfermeira vítima de incêndio na infância e sedenta de vingança contra quem ela julga culpados. Sua vida toma novo rumo quando ela se apaixona por uma paciente, Florence (Esmé Creed-Miles, filha de Samantha Morton), jovem perdidona com tendências suicidas.

Dito isso, resta comentar que Nuvem Prateada é um filme sombrio e um tanto depressivo, talhado no típico realismo proletário britânico com muita câmera na mão e ambientes descoloridos. Além dos dramas de Franky e Florence, há uma personagem com câncer terminal, uma jovem convertida ao islamismo de araque e outras tantas figuras esquisitas e infelizes. A franca exposição do corpo marcado de Vicky Knight condensa a intenção de incomodar o espectador e ao mesmo tempo criar um tipo estranho de empatia.

>> Névoa Prateada está nos cinemas.   

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