Histórias de pais e filhos

Notas sobre os filmes A FILHA DO PALHAÇO e A METADE DE NÓS, em exibição nos cinemas

Quase tudo sobre meu pai

Fortaleza tem sido cenário de um cinema das emoções melancólicas, com personagens caracterizados pela busca de afeto e a entrega a simulacros de felicidade. Inferninho, Fortaleza Hotel e Greta compartilham o teor melodramático e uma estética que eu chamaria de Nordeste neon. As luzes coloridas e o glitter decoram corpos e ambientes de uma maneira frontalmente artificial, como se aquelas vidas estivessem sempre a um passo de se transformarem em teatro.

No caso de A Filha do Palhaço, a performance é orgânica à história – e ao mesmo tempo o seu contraponto. O palhaço do título, na verdade, é um comediante stand up que se apresenta como drag em bares e clubes de Fortaleza. Renato na noite é Silvanelly. De dia, é um cara solitário que não se recuperou totalmente da perda do companheiro que mais amou.

Eis que um dia ele recebe a filha de uma relação do passado para um fim de semana juntos. Eles praticamente não se conhecem. A dificuldade de interação é encenada por silêncios longos, movimentos lentos e ausência de contatos. A menina Joana encontra um pai que entende de batom melhor do que ela e não esconde sua atração por homens. Jesuíta Barbosa vai entrar em cena teatralmente para ser uma espécie de deus ex-machina a liberar os sentimentos por ali.

Fica bastante previsível o desenrolar desses dois dias em que Joana (Lis Sutter) e Renato (Démick Lopes) fatalmente vão superar o estranhamento e encontrar um denominador comum de ternura e apoio recíprocos. A cena em que eles se entendem ao som do disco de uma certa cantora é talvez a mais bela do filme.

No pano de fundo do melodrama está a ausência do pai, tema visitado recentemente pela documentarista Susanna Lira em Nada sobre meu Pai. Falta, porém, uma maior consistência para retirar A Filha do Palhaço de um território um tanto óbvio e telegrafado. Os diálogos cheios de pausas custam a fluir, e a fragilidade da atriz se confunde com o perfil depressivo da personagem. Alguns momentos importantes, como o show simultâneo ao jogo de futebol e o grand finale no palco, padecem de uma encenação exacerbada e desgraciosa, respectivamente.

Resta o carinho evidente com que Pedro Diógenes trata suas criaturas. Assim como a homenagem prestada aos “trabalhadores e trabalhadoras do humor no Ceará”, que inspiraram a personagem Silvanelly.

Nas águas do luto p/materno

Denise Weinberg e Cacá Amaral têm atuações contidas e sensíveis como Francisca e Carlos, casal sexagenário que acaba de perder o filho por suicídio. O filme de estreia de Flávio Botelho, inspirado no suicídio da irmã do diretor, encara um tema difícil. O luto p/materno, num caso como o deles, pode gerar sentimentos diversos, como a culpa e a perplexidade, além de toda a dor. E pode também suscitar uma fratura no casal. É o que acontece em A Metade de Nós, vencedor do prêmio do público da 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 

Francisca se fecha em copas, assumindo um silêncio depressivo e uma indignação contra o psiquiatra que tratava do filho. Ela passa a observar a rotina do médico com intenções de vingança. Enquanto isso, Carlos tenta superar o desalento bebendo muito, entrando para a natação e se mudando para o apartamento do filho. Em comum entre os dois, apenas o fato de desabarem em lágrimas, separadamente, durante um banho de chuveiro. A água, aliás, terá um papel importante na cena derradeira do filme.

É a água também a responsável por um grande tropeço da direção: um erro crasso de continuidade na sequência em que Francisca chega em casa sob chuva forte e logo sai à procura da cachorra em noite de absoluta estiagem. Mas nada é tão grave quanto uma reviravolta completamente implausível na trajetória de Carlos a partir do momento em que ele trava amizade com um vizinho do filho. A quebra no desenho do personagem é violenta.

De resto, A Metade de Nós é um exercício dramático bastante sóbrio e bem conduzido, com cenas familiares de Francisca que transpiram autenticidade. Contudo, o assunto mereceria um desenvolvimento mais aprofundado, que apenas tangencia na função de um quadro pintado pelo rapaz falecido.

 

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