Em busca de uma Guarulhos ancestral

O ESTRANHO  

Muitos de nós conhecemos Guarulhos apenas pelo aeroporto, o maior da América Latina. Poucos imaginam que ali existe uma cidade relativamente grande, com vida intensa, comunidades diversificadas, terreiros de candomblé e uma aldeia indígena. Menos ainda que restam camadas de passado extraviadas nas matas, rios e cavernas da região. O Estranho quer falar de tudo isso.

Falar talvez não seja o verbo correto. Melhor dizer que o filme insinua, transmite de maneira um tanto cifrada a história ancestral de Guarulhos (termo que vem do tupi “guaru”, um peixe). Para isso, Flora Dias e Juruna Mallon elaboram seu ensaio decolonialista a partir do aeroporto. Alê (Larissa Siqueira) é uma funcionária de terra que costuma interferir no conteúdo da bagagem dos passageiros. Ela é nativa daquele território e viu os antigos moradores serem removidos para a construção do aeroporto, inaugurado em 1985. Seu hobbie é coletar pedras, conchas, fósseis, plantas secas e qualquer vestígio de vidas passadas do lugar.

Alê e alguns personagens coadjuvantes aparecem em vinhetas silenciosas datadas de períodos diferentes desde 1492. Seriam como reencarnações de habitantes de outros tempos. No presente, todos vivem as agruras do trabalho alienante: pouco dinheiro, pouca saúde, terceirização, despersonalização. A distância entre realidade e sonho fica clara numa cena musical deliciosa filmada na free shop do aeroporto.

Num híbrido muito livre de documentário e ficção, O Estranho contrapõe a movimentação dos transeuntes com suas malas ao enraizamento da população local com suas práticas sociais e religiosas. O mais estranho ali talvez seja mesmo o aeroporto, que ocupou os territórios originários e cujo ruído perturba as entrevistas e provavelmente assusta a fauna que ainda possa remanescer por ali.

Não é filme para todos os gostos. Sua linguagem está mais próxima da poesia que da prosa, mais para o enigma que para o esclarecimento. Gravado em fins de 2021 e princípio de 2022, ficou marcado pelas máscaras da Covid-19 e pelo desalento em que vivia o país. Por outro lado, o namoro entre Alê e uma depiladora candomblecista soa apenas como mais uma concessão ao fetiche lésbico do cinema brasileiro atual.

>> O Estranho está nos cinemas.

>> A plataforma Embaúba Play está disponibilizando os curtas e médias anteriores de Flora Dias e Juruna Mallon. Veja aqui.

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