Notas sobre os filmes SALAMANDRA e AQUELA SENSAÇÃO QUE O TEMPO DE FAZER ALGO PASSOU
Catherine e seu objeto tropical
As salamandras são répteis que ecoam na mitologia como animais resistentes ao fogo – e portanto ligadas a ele. Catherine, a protagonista do romance de Jean-Christophe Rufin, deixa o mundo “frio” da França e vem para o calor de Recife e Olinda, onde mora sua irmã. Um calor que vai se manifestar não somente na atmosfera, mas também na obsessão sexual e no contato com um ambiente de violência.
Salamandra, filme de Alex Carvalho em coprodução Brasil-França, baseia-se no livro de Rufin (ex-adido cultural do consulado francês em Recife) e trata desse olhar a um só tempo deslumbrado e fetichizante dos europeus em relação ao chamado Terceiro Mundo. Catherine (Marina Foïs) é uma mulher de meia idade que “coloniza” Gil (Maicon Rodrigues), jovem negro e pobre, mas carismático e cheio de iniciativas. Apaixonada pelo rapaz, ela se dispõe a financiar a montagem de um bar para os dois, mesmo sabendo que Gil está envolvido com o roubo de arte sacra.
A trama é um tanto obscura e se vale de uma surpreendente quantidade de gente falando francês em Recife. Mas tudo bem, ficção é ficção. A seu favor, Salamandra conta com a química entre Marina e Maicon, bem forjada tanto nas interações entre os idiomas diferentes quanto nas muitas cenas de alta voltagem erótica. É nesse deslizamento entre tesão, oportunismo e domínio do outro que o casal ganha consistência na tela.
De qualquer forma, é inevitável que, nessa opção de dramaturgia, prevaleça a perspectiva da mulher europeia sobre seu objeto tropical. Ela é quem vive a curva dramática do filme, da deriva existencial em que chega ao Brasil ao estado de quase inconsciência que atinge ao ver seus planos afundarem. E encarnar, então, a salamandra.
Ann e sua vida passada em branco
Física e espiritualmente desinteressante, com relações sexuais inexpressivas, um emprego de merda, uma família com a qual não consegue se comunicar e um nome sem graça, Ann é o tipo de personagem que pode render muito num filme ou simplesmente flopar como um balão furado. Ela fica a meio caminho em Aquela Sensação que o Tempo de Fazer Algo Passou (The Feeling that the Time for Doing Something Has Passed). O erro de português é do título brasileiro mesmo.
Em seu longa de estreia, Joanna Arnow escreveu, editou, dirigiu e encarnou Ann (miolo de “Joanna”), essa pobre moça nova-iorquina que vê a vida passar em branco. Seu único empenho verdadeiro é cumprir ordens de parceiros sexuais em jogos de submissão. A ligação de nove anos com um cara casado, que a despreza olimpicamente, parece ser sua atividade humilhante favorita. Ao contrário do que afirma o título, Ann sugere alguém que nunca fez algo importante. Tudo para ela, de um blow job a uma reunião de trabalho, tem a consistência pastosa do feijão pré-cozido que lhe mata a fome diariamente.
Uma sucessão de cenas bem curtas, de humor lacônico, descreve essa vidinha que podia ter saído, com muitas melhoras, de um filme de Aki Kaurismäki ou de Roy Andersson. Alguma coisa mais nórdica que propriamente norte-americana, embora a produção seja de Sean Baker, vencedor recente da Palma de Ouro de Cannes.
Eu dei algumas risadas de surpresa, mas o melhor comentário que já li sobre esse filme foi de alguém no Letterboxd: “Filmes sobre a tediosa vida moderna são parte da tediosa vida moderna”. Bingo!
Salamandra e Aquela Sensação que o Tempo de Fazer Algo Passou estão nos cinemas.


