Uma mulher asfixiada pelo fascismo doméstico

AINDA TEMOS O AMANHÃ

Com esse título que evoca filmes do pós-II Guerra, Ainda Temos o Amanhã (C’è Ancora Domani) emula vários aspectos do neorrealismo italiano. Tudo se passa num bairro operário de Roma em 1946. A fotografia em preto e branco, o sotaque dos personagens e a presença de soldados da ocupação norte-americana trazem à memória filmes de Rossellini e De Sica rodados naquela época.

A diretora Paola Cortellesi, atriz e apresentadora de TV que estreia na direção, assumiu também o papel central de Delia, dona de casa oprimida por um casamento tóxico e preocupada em que sua filha mais velha não siga o mesmo destino. Para que isso não aconteça, ela fará algo impensável.

O contexto lembra também o de Um Dia Muito Especial, de Ettore Scola, em que Sophia Loren vivia uma esposa sufocada em plena era fascista. A anulação das mulheres pelo fascismo é o tema de fundo e de frente de Ainda Temos o Amanhã.

O quadro familiar não podia ser mais asfixiante para Delia. Além de escravizada no lar, ela se desdobra em diversos ofícios para ganhar dinheiro e entregar ao marido (Valerio Mastandrea), que retribui com maus tratos físicos regulares, recebidos em silêncio pela mulher. A primeira cena do filme, nesse sentido, é uma bofetada. A indigência moral do homem foi herdada do pai e parece passar para os meninos. A filha jovem (Romana Maggiora Vergano) ensaia noivado com um rapaz que sinaliza alguma prosperidade para a família, mas não uma alternativa ao autoritarismo patriarcal.

Um ponto interessante é como a prepotência masculina aparece disseminada entre as diferentes faixas etárias e classes sociais. Era o espírito da época na Itália, contra o qual se insurgiam os republicanos e comunistas até que as mulheres fossem convocadas a votar pela primeira vez em 1946. Esse cenário político é fugazmente referido no filme até que se descortine em plenitude nas cenas finais. O roteiro faz mistério sobre uma correspondência recebida por Delia no início do filme e lança pistas falsas que poderão frustrar certas expectativas do público quanto à natureza da libertação de Delia.

A simulação do neorrealismo é quebrada de várias maneiras. Não vemos sinais de destruição da guerra, o que talvez se justifique pelo fato de que Roma foi relativamente poupada dos bombardeios dos aliados. Não há tampouco a participação de atores não profissionais, como era de praxe nos filmes neorrealistas. Ademais, Paola Cortellesi insere toques de comédia irresistíveis e rompe o realismo pelo menos quatro vezes, criando esboços de filme musical em meio ao drama. Um deles chega a tangenciar o mau gosto, quando a violência doméstica ganha foros de espetáculo, confundindo-se com uma coreografia.

Ainda Temos o Amanhã foi um dos dez filmes de maior bilheteria na Itália em todos os tempos. Para além da fama de sua diretora e estrela, de alguma forma bateu fundo na alma italiana com sua minúscula semente de conscientização e empoderamento das mulheres. É significativo que, com tema ligeiramente semelhante, tenha superado o sucesso de Barbie no país.

>> Ainda Temos o Amanhã está nos cinemas.

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