Um tiro no estômago

O MAL NÃO EXISTE

Eu fico um pouco triste por não poder acompanhar alguns críticos que admiro em sua exaltação desse novo filme de Ryûsuke Hamaguchi, vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza de 2023. Mas não posso contrariar a mim mesmo. Achei O Mal Não Existe (Aku wa sonzai shinai) um bocado decepcionante. E por várias razões.

Em princípio, por sua abordagem presunçosamente contemplativa da Natureza. Aquelas imagens se prestavam na origem a servir como suporte visual para um trabalho da compositora Eiko Ishibashi, autora da trilha de Drive My Car e depois, naturalmente, também deste filme. Após quatro minutos de copas de árvores na abertura, Hamaguchi alonga-se na exposição muito metódica da relação do biscateiro Takumi (Hitoshi Omika) com a lenha, a coleta de água e a filha num vilarejo bucólico perto de Tóquio.

Eis que as aparentes paz e ordem do lugar se veem ameaçadas por um projeto empresarial de instalar ali um “glamping” (camping glamouroso) que colocará em risco o equilíbrio ecológico cultivado pela pequena comunidade. Os dois representantes do projeto ouvem as restrições dos moradores e começam a se solidarizar com eles.

O rapaz e a moça de Tóquio são pessoas insatisfeitas com seus ofícios, em contraste com a tranquila felicidade do pessoal da periferia. Mas Hamaguchi não se contenta com oposições simples como essa. A Natureza é benéfica e deve ser preservada, mas também é agressiva e pode ferir. Se considerarmos que os homens também são parte da Natureza, então ninguém está a salvo de representar o Mal – que existe, sim, apesar do título.

Os cervos que são caçados no bosque funcionam como metáfora. Eles não atacam as pessoas, a não ser que levem um tiro no estômago. A comunidade está simbolicamente levando um tiro no estômago ao ter suas águas e sua saúde ameçadas pelo projeto turístico. A equação metafórica caminha por aí, nos termos habituais dos dramas sócio-ambientais sobre ganância capitalista. Mas nada disso me fez engolir o que Hamaguchi nos reserva nos minutos finais do filme.

Só o caráter idiossincrático do seu cinema – tanto em termos de conteúdo quanto de estrutura narrativa – poderia levar a desfecho tão estapafúrdio. Eis um filme que abusou da minha paciência e da minha capacidade de absorver o arbitrário sob a capa do “tema muito importante”.

>> O Mal Não Existe está nos cinemas.

 

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