A SUBSTÂNCIA
Prêmio de melhor roteiro em Cannes, A Substância (The Substance) é um pastiche de vários filões do filme de gênero. Lá estão o tema do duplo, explorado desde o expressionismo alemão, a ficção científica baseada na invasão ou troca de corpos, a interação entre pessoas e monstros, o horror corporal, a arte mórbida. Tudo isso, porém, aplicado a uma obsessão muito contemporânea, que é o sucesso a partir da aparência.
Depois que entreouve palavras desairosas sobre seu envelhecimento, a estrela de televisão vivida (e morrida) por Demi Moore resolve se engajar num experimento que poderia ter saído da cachola de David Cronenberg. Aplicada ao corpo, a tal substância provoca um desdobramento de células que faz surgir uma versão mais jovem de si mesma. Com dois poréns: a mutação precisa ser estabilizada diariamente, e as duas versões têm que se revezar semanalmente.
Não demora a que a versão jovem (Margaret Qualley) se rebele contra essas interrupções, fazendo com que as duas versões entrem em conflito esquizofrênico. Nesse ponto, o filme hollywoodiano da francesa Coralie Fargeat bordeja a “rivalidade” que existiria entre a mulher madura e sua versão jovem. Esta teme aquela e aquela inveja esta. No pano de fundo, a ambição.
Não há como negar um quê de etarismo nessa ideia de que o envelhecimento é algo feio e decadente, tendendo mesmo à monstruosidade. O pretexto é que tudo está sendo mostrado pela perspectiva da sociedade do espetáculo com sua obsessão pelo presente e que não tolera a passagem do tempo. É preciso estar belo e jovem para ser amado e assim ter êxito. O desgaste do tempo na calçada da fama e no corpo de Demi Moore a cada tomada de suas primeiras aparições é um signo irreversível de obsolescência.
O espetáculo está na própria construção do filme, com sua direção de arte apelativa, sua montagem eletrificada e seus efeitos de impacto seja no efervescer de um comprimido, seja no espetar de uma seringa ou na mordida num camarão. Entre muitas referências e influências, notei ecos de O Iluminado, 2001-Uma Odisseia no Espaço e Um Corpo que Cai (os dois últimos também com citações musicais).
Como de praxe em filmes recentes, as mulheres podem estar na berlinda, mas são os homens (todos eles) que se comportam como porcos misóginos ou pseudo-sedutores ridículos. Dennis Quaid extrapola na brincadeira como o patrão misógino.
A Substância caminha a passos firmes da simples ficção científica para o horror trash e as bizarrices mais descabeladas. O despropósito das cenas finais reproduz um desejo reprimido de cobrir a plateia com um banho de sangue. Este sim, a verdadeira substância do filme.
>> A Substância está nos cinemas.


Comentário certeiro! Parabéns!
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