Em defesa da morte doce

O QUARTO AO LADO

Tilda Swinton não precisa de muita maquiagem para parecer alguém que está prestes a morrer de câncer. Sua máscara facial e o corpo esguio são materiais mais que adequados para a personagem de O Quarto ao Lado (The Room Next Door). Martha, experimentada correspondente de guerra, já se acostumou com a ideia de que não durará mais que um mês. Abdica de prosseguir num tratamento condenado ao fracasso e deseja aquilo que todos desejamos: uma morte digna e indolor.

A eutanásia tem sido uma opção cada vez mais desejável. Martha poderia ir para a Suíça, onde a chamada “morte assistida” é permitida, como o fizeram Jean-Luc Godard (que já morava lá) e Antonio Cícero. Mas ela prefere adquirir uma pílula da eutanásia e ficar em Nova York, desde que tenha a companhia de uma amiga nos momentos finais. Esse encargo vai recair sobre a escritora Ingrid (Julianne Moore), autora de um livro sobre o medo da morte.

Com base no relato principal do romance O Que Você Está Enfrentando, de Sigrid Nunez (publicado no Brasil pela Editora Instante), Pedro Almodóvar engendra mais um melodrama terminal, como foi o caso de Fale com Ela. Em O Quarto ao Lado, pode-se identificar uma defesa da eutanásia, a morte doce com sofrimento minimizado. Martha organiza a sua como quem planeja um crime perfeito. Mas há algumas sérias ambiguidades nisso.

A forma como ela pede o favor à amiga é de certa maneira uma imposição, como parece ser próprio do seu caráter dominador. A convivência num airbnb que mais se assemelha a um sarcófago de luxo tem um duplo efeito sobre Ingrid: é uma terapia para sua fragilidade diante da morte e ao mesmo tempo uma tortura. Quanto mais abatida fisicamente, mais imperativa Martha se torna, não sem uma ponta de sadismo, ainda que involuntário (vide a porta do seu quarto fechada como senha falsa).

Esse argumento por si só melodramático é sobrecarregado de outros subplots da mesma espécie em flashbacks. Temos a filha de Martha, emocionalmente apartada da mãe; o pai da moça, traumatizado pela guerra do Vietnã; o reencontro de dois homossexuais na guerra do Iraque. Não se pode dizer que Almodóvar administra com sutileza esse labirinto de paixões. O filme patina um bocado, ora em flashbacks esquemáticos, ora nas ruminações repetitivas de Martha em sua desistência de sobreviver.

O único personagem com algum destaque além das duas amigas é o de John Turturro, que tem uma função quase supérflua. Amante compartilhado pelas duas no passado, ele vocaliza uma indignação contra as mudanças climáticas, o neoliberalismo e o avanço da extrema-direita no mundo, razões talvez suficientes para alguém não querer continuar vivendo por aqui.

Nos melhores filmes de Almodóvar, o artificialismo das tramas combinava bem com os maneirismos do estilo, fazendo um todo orgânico e harmônico. Em No Quarto ao Lado, seu primeiro longa em inglês (depois dos curtas A Voz Humana e Estranha Forma de Vida), não há muito o que reconhecer de autoral, além da interação entre mulheres e de algumas escolhas cenográficas (como a porta vermelha, móveis coloridos e alguns figurinos). As citações a livros e filmes soam carregadas de intencionalidade. A principal delas sugere uma coincidência rudimentar: a casa alugada dispunha de um DVD de Os Vivos e os Mortos com as frases de Joyce que Martha gostava de repetir e a neve que cai indiferente sobre uns e outros.

Tilda e Julianne, em supercloses penetrantes (um deles citando Persona de Bergman), sustentam nossa atenção, mesmo quando o roteiro parece girar em falso no mesmo lugar. Sem qualquer bairrismo, eu diria que O Leão de Ouro de Veneza teria destino melhor se fosse para o brasileiro Ainda Estou Aqui. Mas isso é outra história.

>> O Quarto ao Lado está nos cinemas.

Um comentário sobre “Em defesa da morte doce

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