Jornada onírica pela Pequena África

PRAIA FORMOSA

Uma parada do VLT com esse nome no Centro do Rio é tudo o que resta da antiga Praia Formosa, aterrada em 1879 como parte das obras de construção do porto e do Canal do Mangue. Esse apagamento é tomado no filme de Julia De Simone como símbolo de todos os apagamentos da história da cidade e, principalmente, de sua porção afrodescendente.

Julia e suas colaboradoras de roteiro imaginaram o despertar, no Rio de Janeiro de hoje, de Muanza, uma mulher trazida do Congo no século XIX. Essa premissa de ficção científica se presta, então, a uma jornada onírica entre o passado escravocrata e um presente caracterizado pela extinção da memória para dar lugar à modernização e à gentrificação.

As obras do Porto Maravilha, o Boulevard Olímpico, a Praça Mauá reconfigurada, o Cais do Valongo e a área conhecida como Pequena África são os cenários por onde Muanza (a portuguesa Lucília Raimundo) circula à procura de sua amiga Kieza (Samira Carvalho). As duas haviam combinado fugir juntas quando escravizadas, mas se desencontraram. Encontrar Kieza é não apenas a concretização de uma sororidade, mas principalmente uma forma de Muanza reatar com suas raízes numa espécie de cidade-fantasma do futuro.

O Rio, visto quase sempre à noite, ganha um aspecto meio sobrenatural na esplêndida fotografia de Flávio Rebouças, somada à trilha sonora inquietante de Marco Scarassatti. A diretora de arte Ana Paula Cardoso providenciou cenários interiores extremamente sugestivos, que variam entre espaços arruinados e recintos de época bem decorados. Os tempos se confundem, e não há por que esperar linearidade. É como se as camadas da história se sobrepusessem, à luz da física quântica. As cartas trocadas entre Muanza e Kieza fazem a ponte, junto à leitura de alguns textos e documentos do século XIX. O vínculo com a ancestralidade é enfatizado pelo uso dos idiomas kimbundo e kitongo.

Muanza é vista no passado na relação tensa e transgressora com a patroa Catarina (a portuguesa Maria d’Aires) e no presente visitando os locais de sua vida pregressa. A ausência de separação nítida entre as temporalidades cria suaves colisões. Uma das mais bonitas ocorre quando Muanza, já caracterizada com um visual contemporâneo, é apresentada aos achados arqueológicos do Valongo por Mãe Celina de Xangô. Outra é a dança de Muanza num

Com um estilo que lembra o de Pedro Costa, Praia Formosa é um filme que requer do público a suspensão da descrença e da ansiedade. Seu ritmo é compassado, quase sonambúlico, e a narrativa escapa à lógica cênica mais corriqueira. Mas a beleza da realização e as sugestões sobre a presença negra na cidade superam qualquer estranhamento.

>> Praia Formosa está nos cinemas.

O site da Cinemateca do MAM está oferecendo até 9 de dezembro uma retrospectiva online e gratuita da obra de Julia De Simone.   

 

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