Três mulheres na “cidade das ilusões”

TUDO QUE IMAGINAMOS COMO LUZ

Bem distante do modelo de entretenimento de Bollywood, Tudo que Imaginamos como Luz (All We Imagine as Light) me trouxe à memória o cinema de Satyajit Ray, o mestre de Calcutá. Lá estão o olhar compassivo para a gente comum, a serenidade no filmar e a busca de conciliar o realismo urbano com uma pátina lírica, até mesmo melancólica, que evoca ainda o neorrealismo italiano.

O filme começa como um documentário sobre Mumbai, a metrópole indiana por excelência. Dentre os moradores reais que comentam os problemas de suas vidas na cidade emerge, como se fosse apenas mais um, a figura ficcional de Prabha (Kani Kusruti), uma enfermeira abnegada, oriunda do estado de Kerala. Em seguida, somos apresentados a Anu (Divya Prabha), sua colega de trabalho e de moradia, mais jovem e incauta, com quem Prabha tem uma relação quase filial. Um pouco mais adiante, entra na roda Parvaty (Chhaya Kadam), cozinheira do hospital, mulher de meia idade às voltas com uma ordem de despejo.

Prabha está amarrada ao passado. O marido, fruto de um casamento arranjado, emigrou para a Alemanha poucos meses depois das bodas e não dá notícias. Anu, por sua vez, só tem futuro. Namora às escondidas um rapaz muçulmano e tem dificuldade em encontrar um lugar para seus encontros íntimos. Já Parvaty é escravizada pelo presente e, sem ter onde morar, resolve retornar para sua aldeia.

Mumbai é tão personagem quanto elas na primeira metade do filme. Volta e meia, é como se um documentário se interpusesse à ficção. A grande cidade, para onde fluem imigrantes de várias partes do país, é vista como um fluxo constante de movimentos, luzes, cores, suor e águas das monções. “Cidade das ilusões”, define alguém. Na segunda metade, somos levados à aldeia litorânea de Parvaty, onde as personagens vão encontrar um  tanto dos seus destinos – ou seus fantasmas, como é o caso de Prabha.

A paralisia afetiva de Prabha é agravada pelo recebimento de um pacote enviado pelo marido da Alemanha. O presente, apesar de sua banalidade, tem o efeito de reatar Prabha com a lembrança de uma união àquela altura já esmaecida. Como resultado, ela vacila diante de uma nova chance amorosa. A cena em que ela fetichiza sexualmente o objeto é uma de várias ousadias cometidas pela diretora e roteirista Payal Kapadia para os cânones do cinema indiano. Há a visão de seios, pelos pubianos, muitos beijos na boca e uma cena de sexo bastante gráfica.

Há, sobretudo, um retrato sutil e envolvente da realidade das mulheres na Índia contemporânea: a falta de liberdade nas relações afetivas, o patriarcalismo, as interdições religiosas, o império da burocracia. A amizade entre as protagonistas aparece como um conforto para cada uma, nos moldes de uma família substituta. Tudo isso é mostrado sem ênfases, mas em filigrana no intimismo mais delicado. A frequente dissociação entre imagens e falas cria uma tonalidade poética realmente encantadora. Esse diferencial se adensa ao limite do mistério no último ato durante a belíssima visita a uma caverna de Ratnagiri povoada por figuras humanas e no episódio em que a boa samaritana Prabha salva a vida de um homem afogado.

O título brasileiro de Tudo que Imaginamos como Luz (sem o artigo “o” antes do “que”) é mais um erro gramatical típico, como em Que Horas ela Volta e O Dia que te Conheci. Felizmente, isso não afeta a performance do filme, vencedor do Grande Prêmio em Cannes (pela primeira vez para um filme indiano), indicado ao Globo de Ouro de filme internacional e provavelmente também ao Oscar da categoria. Uma das razões do efeito hipnótico do filme é a trilha sonora do compositor Topshe, acrescida da composição The Homeless Wanderer, uma espécie de Rhapsody in Blue etíope composta pela freira Tsege Marian Gebru.

>> Tudo que Imaginamos como Luz está nos cinemas.

4 comentários sobre “Três mulheres na “cidade das ilusões”

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  2. Salvo engano, por problemas políticos entre o governo e a diretora Payal Kapadia, a Índia não selecionou esse filme p/ representá-la na categoria de melhor filme internacional do Oscar.

  3. Salvo engano, por problemas políticos entre o governo e a diretora Payal Kapadia, a Índia não selecionou esse filme p/ representá-la na categoria de melhor filme internacional do Oscar.

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