A câmera no olho do furacão

A BATALHA DA RUA MARIA ANTÔNIA

A tendência é que os maiores elogios a A Batalha da Rua Maria Antônia se dirijam à fotografia de Will Etchebehere. De fato, o trabalho de câmera é nada menos que prodigioso. O filme se compõe de 21 planos-sequência (numerados) nos quais a câmera “monta” internamente a ação, deslocando-se por escadas, pátios, corredores e até entrando em carros sem que se perceba. O quadro se desloca para todos os lados ao sabor do movimento dos atores, das refregas e explosões com uma agilidade e uma segurança que lembram os melhores momentos de Dib Lutfi, sobretudo em Terra em Transe.

A textura da imagem em preto e branco, a proporção do quadro e as “pontas” de filme entre cada sequência também remetem à estética de 1968, quando os estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP entraram em conflito com um grupo de militantes do famigerado Comando de Caça aos Comunistas entrincheirado no prédio em frente, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mas não são apenas essas as razões pelas quais o filme é capaz de nos transportar para o olho do furacão.

A direção de Vera Egito é uma máquina de precisão ao relacionar atores, espaços e câmera em tomadas longas e complexas. A direção de arte (Valéria Costa) e os figurinos (Alice Canella) são também fundamentais para evocar aqueles dias em que o movimento estudantil resistia ao assédio da ditadura entre arroubos de coragem e muito medo da repressão do DOPS.

Apesar desse enorme poder de sugestão, o filme está longe de ser didático. Quem quiser conhecer os detalhes da votação em curso para a direção da União Nacional dos Estudantes, do pedágio que os alunos cobravam para financiar o congresso da UNE e da presença do CCC no Makenzie terá que pesquisar ou procurar o documentário quase homônimo de Renato Tapajós.

A Batalha da Rua Maria Antônia, vencedor da Première Brasil do Festival do Rio de 2023, é uma ficção baseada nos fatos, mas que toma liberdades para condensar acontecimentos de vários dias em 24 horas e imaginar três histórias de amor em meio à tensão política. Vera Egito pensava inicialmente em retratar um jovem vacilante que aos poucos tomava consciência do que se passava com os colegas. No curso da preparação, optou por uma menina (Pâmela Germano) que, a princípio, só pensa em tirar dali a amiga de infância por quem estava apaixonada. O romance lésbico parece atender mais a uma conveniência dramatúrgica atual do que ao mood daquele momento. Mas dá margem a uma bonita cena erótica calcada em distorções da imagem.

Há também o namoro entre uma estudante (Isamara Castilho) e o líder do Centro Acadêmico (Caio Horowicz), bem como um triângulo amoroso envolvendo uma professora (Gabriela Carneiro da Cunha) que evolui da neutralidade para o engajamento. Com isso o filme mostra como a ação política era então indissociável da vida afetiva dos jovens que se rebelavam contra a ultradireita.

O desejo determina a ação, como disse Aristóteles, citado numa aula sobre a formação do caráter. Entre “a vida normal acontecendo lá fora” e a luta no interior da faculdade ocupada, era preciso optar a todo instante. Os fascistas atacavam, e a polícia podia invadir a qualquer momento. A Roda Viva de Chico Buarque dá o tom meio épico, meio melancólico da belíssima sequência nº 4.

Esse filme é um tour de force de realização que merece atenção e reconhecimento. Como prova o sucesso de Ainda Estou Aqui, a nossa história recente ainda tem episódios dignos de ser relembrados. Especialmente se, como nesse filme de Vera Egito, suscitam uma experiência audiovisual imersiva desse quilate.

>> A Batalha da Rua Maria Antônia será lançado em 2025.

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