Mães fora da caixinha

NINJABABY e A GAROTA DA AGULHA no streaming

Zero instinto maternal

Uma comédia sobre gravidez como Ninjababy só seria possível numa sociedade progressista como a norueguesa, onde se pode tratar de sexo, aborto e maternidade com uma franqueza quase crua. A Noruega é famosa por seu alto índice de liberdade de expressão e práticas religiosas muito tênues. Daí o choque que alguns aspectos desse filme podem causar em mentalidades mais conservadoras.

Rakel (Kristine Kujath Thorp) é uma jovem descolada, festeira, cartunista amadora e pobre para os níveis de Oslo. Ela quer ser um monte de coisas, menos mãe. Naturalmente, se descobre grávida de um encontro casual seis meses antes. Tarde demais para abortar, ela decide dar o bebê para adoção, mas faz questão de escolher o tipo de família que o receberia.

As coisas parecem se encaminhar satisfatoriamente até que o pai da criança passa subitamente da rejeição a um fervor paternal inesperado. Os planos de Rakel começam a estourar antes da bolsa, inclusive quanto ao namoro embevecido que vem fruindo com seu professor de aikidô. As interações nesse trecho são particularmente divertidas.

Com poucos personagens, bons desempenhos, uma linguagem espertinha e tendo por base uma graphic novel de Inga Sætre, Ninjababy transita com humor e algum drama por temas ousados. Um desenho de Rakel ganha vida como representação do feto que ela carrega. O ninjababy animado quer interferir no seu destino futuro. Se for adotado, gostaria de sê-lo por Angelina Jolie. Quando Rakel transa com o professor, o feto trepida no ventre e não gosta nem um pouquinho de receber esperma na cara.

Ao tratar de rejeição maternal com uma sinceridade acachapante, o filme da diretora Yngvild Sve Flikke externa o que muitas mães silenciam. Por isso mesmo, pode criar “gatilhos” para pessoas sensíveis ao assunto. A graça de Rakel tem um grau de rudeza que dá à comédia suas ótimas arestas.

>> Ninjababy está na plataforma Mubi.  

Trailer legendado em inglês:



Desgraças em série

Indicado ao Oscar de filme internacional, A Garota da Agulha (Pigen med nålen) está acima de qualquer suspeita quanto aos méritos técnicos e artísticos. A direção de Magnus von Horn é impecável, com aquele senso de visceralidade que nos acostumamos a ver no cinema dinamarquês pós-Lars Von Trier. O elenco está muito bem, a fotografia monocromática de Michal Dymek é virtuosística com acenos a Carl Dreyer, a trilha musical de Frederikke Hoffmeier mexe com os nervos.

Mesmo assim, ou talvez justamente por isso, a experiência de assisti-lo me pareceu extremamente desagradável. Eis um filme que pode ser chamado de misery porn pelo apetite com que mergulha nas desgraças de seus personagens.

Estamos em Copenhague no fim da I Guerra Mundial. A pobre operária Karoline (Vic Carmen Sonne) acha que o marido morreu na guerra e inicia um romance com o dono da fábrica onde trabalha. Além de despejada do cafofo onde morava por atraso no pagamento, ela fica grávida do patrão e ainda perde o casamento e o emprego por pressão da pretensa futura sogra, uma baronesa.

Isso é só o começo do calvário de Karoline, que vai parar numa agência clandestina de adoção de crianças. Deixo o resto para quem se aventurar pelas esquinas soturnas e lúgubres dessa história alegadamente inspirada em fatos verídicos. Basta dizer que envolve aborto, mortes em série, gente com o rosto deformado na guerra virando aberração circense, uma menina escravizada, amamentação de filhos alheios, vício em éter e morfina.

A maternidade – sua rejeição e seu apelo –, assim como a morte, seu extremo oposto, estão no centro desse drama sinistro. Se os homens parecem bondosos ou fracos, as mulheres personificam a perversidade de um contexto histórico cruel. Karoline, a vítima por excelência, sofre como o diabo durante duas horas para o conforto de quem vê o filme distante daquele tempo e daquele destino. Assim talvez seja possível dizer: bem-vindos ao pesadelo.

>> A Garota da Agulha está nas plataformas Mubi, AppleTV e Amazon.

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