MEU VERÃO COM GLÓRIA
Desgastada pelo uso abusivo, a palavra afeto ganha significados ricos em Meu Verão com Glória (Àma Glória). Não apenas pela ternura das imagens que a diretora Marie Amachoukeli constrói, mas também pela complexidade envolvida nas relações entre as personagens.
Podemos perceber o filme em três planos que se entrelaçam. No primeiro plano, há o amor que liga Cléo, menina parisiense de seis anos de idade, a sua babá caboverdiana Glória. Como em tantos casos que conhecemos de filmes ou da vida, Cléo perdeu a mãe muito cedo, e toda a sua referência maternal é ligada à babá negra. Quando Glória precisa voltar para Cabo Verde após a morte da sua mãe, tendo uma filha grávida, a separação é difícil para as duas.
No segundo plano, está o aspecto colonialista dessa relação. Grande parte da economia de Cabo Verde se baseia nas remessas enviadas por cidadãos que emigram para a Europa. Glória é mais uma dessas pessoas que acabam se ligando mais à família dos patrões que à sua própria. Esse talvez seja o ponto de contradição numa personagem que, sem isso, seria mera idealização.
Nas férias, Cléo é enviada a Cabo Verde para matar a saudade de Glória. Em cultura muito diferente da francesa e na convivência com os filhos da babá, a face pontiaguda do afeto infantil vai se manifestar. É o terceiro plano do filme, quando o ciúme ameaça envenenar a frágil fraternidade entre as crianças.
Temos, então, Glória, uma mãe que se alienou um tanto dos seus próprios filhos; Fernanda, a filha que rejeita o seu bebê; César, um menino que não aceita o relativo distanciamento da mãe; e Cléo, a filha “do coração” que não consegue entender a repartição dos laços de afeto. Nessa dinâmica, o amor mais autêntico de criaturas inocentes pode levar a pensamentos cruéis.
A grande qualidade de Meu Verão com Glória é tratar desses assuntos sem grandes asserções verbais, numa linguagem eminentemente visual. O trabalho com o elenco e com a mise-en-scène, em chave semidocumental, afasta o risco do melodrama e chega ao espectador com uma notável impressão de coisa vivida, ao invés de encenada. Para isso, é fundamental o talento espontâneo da pequena grande atriz Louise Mauroy-Panzani (preparada por Laure Roussel), assim como a desafetação da também estreante Ilça Moreno Zego, no papel de Glória, e de todos os demais intérpretes. A atuação da menina, tanto na descontração do dia a dia, quanto nos instantes de intensa emoção, é algo de fenomenal. Sua aparência, longe da imagem clichê da garota bonequinha, é outro fator de empatia.
O rito de passagem de Cléo é pontuado por intervenções de animação pintada à mão, que condensam o subtexto poético de suas experiências. Estes são os únicos momentos em que a trilha musical de Fanny Martin dá o ar de sua graça sutil. De resto, o filme confia no poder das imagens e dos personagens.
Abraços, toques de mão e olhares amorosos compõem uma rede de imagens de afeto que me deixou com um sorriso nos lábios durante todo o filme. Mas não falta lugar também para o suspense quando esses mesmos afetos levam Cléo à beira do abismo. Ou para uma onda comovente quando a realidade social cobra seu preço.
>> Meu Verão com Glória está nos cinemas.


Importante notar que esse filme teve um preparador de elenco para a criança. Em um filme como esse, em que a interpretação da pequena Cléo é avassaladora dramaticamente e ela é a protagonista absoluta, esse profissional precisa muito ser valorizado.
abraço querido
Pedro Freire
Sim! Todas as honras a Laure Roussel, agora mencionada no texto.
Carlinhos, nem sei o que te dizer. Sobre a garotinha gênia, o que falar (e ainda com um “q” de Little Miss Sunshine…)? Entendo o seu sorriso mas estou mesmo é nadando em lágrimas… que filme! Antirracista, sutil, humanista, terno… e me remeteu a um dos filmes da minha vida: Os Incompreendidos. Saí da sala muito mexida. ❤ E aí tenho que voltar pra casa e me deparar com a coletiva de imprensa do Trump e do Macron… Por quê? Pra quê? Me deixem no cinema! Filme lindíssimo.
Que bacana. Mas quem será essa “Anônima”?
Eu, Leninha. 😀 com viva às plataformas digitais que pedem login mas deixam a gente sem identificação.
Coisas mais lindas! Filme e resenha! Valeu!!!