GIRASSOL VERMELHO
Pode-se embarcar em algumas vias de interpretação para a história desse Romeu em apuros. Uma delas é a ficção científica orwelliana, com os destinos de todos governados por uma “Máquina” e uma espécie de Grande Irmão onipresente numa tela de TV. Outra é a vertente psicanalítica, na qual Romeu estaria purgando alguma culpa do passado mediante um mergulho nos seus próprios fantasmas. Há, ainda, uma possível leitura religiosa sacrificial, inspirada pelas “estações” de uma via sacra, a maçã do pecado original, uma mulher chamada Eva, uma Pietà e uma Última Ceia em mesa formatada quase como uma cruz.
Tudo isso, porém, está subordinado ao realismo fantástico cultivado pelo escritor mineiro Murilo Rubião (1916-1991). Um território do absurdo no qual nada se explica racionalmente. O filme de Eder Santos, codirigido por Thiago Villas Boas, baseia-se nos contos A Cidade e Os Comensais, que, aliás, não estão incluídos no livro A Casa do Girassol Vermelho, citado diretamente numa das primeiras cenas.
Fumaças kafkianas obliteram (física e metaforicamente) o sentido do pesadelo vivido por Romeu (Chico Díaz) desde que ele se despede de Eva na primeira estação e toma um trem em busca de uma certa liberdade. O trem vai parar numa estação em que Romeu é obrigado a saltar e ver-se numa cidade onde é crime fazer perguntas se você não for uma autoridade. Preso em diversos tipos de jaula, ele é interrogado, convocado a fazer denúncias e torturado com lama, água e fumaça. Uma mulher misteriosa (Luiza Lemmertz) o atrai, misto de destino e acaso, lascívia animal e conforto espiritual, para confundi-lo ainda mais. Ele não é quem pensam que é – mas, afinal, quem será?
Chico Díaz, ator maleável como poucos, cai à perfeição no papel desse homem comum submetido a circunstâncias incomuns. Do prazer dos beijos com Luiza Lemmertz, ele passa aos suplícios duramente infligidos ao personagem. Romeu é apenas a projeção de um ser castigado por forças estranhas a sua compreensão. Vítima de um processo kafkiano em que testemunhas prestam depoimentos também incongruentes.
Mais que qualquer interpretação textual, Girassol Vermelho requer uma fruição principalmente visual. Eder Santos é um dos grandes pioneiros da videoarte no Brasil e um artista visual de percurso internacional. Nesse seu terceiro longa de ficção (depois de Enredando as Pessoas e Deserto Azul ), ele monta seu circo cenográfico no galpão de uma antiga fábrica de cimento, que vira estações de trem, usina, local de torturas e de orgia, clube de dança, salão de banquete, etc. A estética combina tecnologia dos áureos tempos da videoarte com ferragens pesadas em ambientes enevoados e distópicos.
Recompensa melhor terá o espectador que não se prender a expectativas lógicas ou literais, mas, ao invés disso, se deixar levar pela beleza inquietante dos cenários, das luzes e dos movimentos. Se cada um de nós se colocar um pouco no lugar de Romeu, vai compartilhar as supresas da viagem.
>> Girassol Vermelho está nos cinemas. Estreia no Rio prevista para 3 de abril.



Pingback: Chamas contra a caretice | carmattos