É Tudo Verdade: Trens

A história vista da ferrovia

Desde que os irmãos Lumière filmaram um deles chegando à estação de La Ciotat, os trens se alinharam com a história do cinema. Não só porque eram mais um símbolo da Revolução Industrial e foram os primeiros veículos a transportar uma câmera em movimento, mas também porque a sucessão de vagões de alguma forma se assemelhava aos fotogramas de uma fita de celuloide correndo no projetor. Joel Pizzini é um dos muitos apaixonados pelos trens no cinema.

Outro parece ser o polonês Maciej Drygas, autor de Trens (Pociagi), vencedor do último Festival Internacional de Documentários de Amsterdã e filme de encerramento do É Tudo Verdade. Sem qualquer fala, nem mesmo som direto, usando apenas imagens de arquivo e uma faixa sonora pós-produzida, Drygas criou uma compilação contundente sobre a história da Europa nos trilhos na primeira metade do século XX.

Trens tem dois momentos cruciais que se opõem: no início, cenas da construção de grandes locomotivas, quando o fragor da indústria pesada servia às expectativas de um mundo moderno e mais ágil do que até então. Perto do fim, temos o oposto: imagens de um cemitério de trens, possivelmente destruídos pela guerra, ruínas do sonho industrial.

Entre uma coisa e outra, os trens são vistos, primeiro, como espaços românticos de viagens, luxo de uma elite que se divertia nos vagões e elogio do deslocamento e da velocidade. Aos poucos, porém, com a I Guerra Mundial, as ferrovias passam a ser frequentadas por soldados, transporte de tanques de guerra, bombas, etc. O mundo ganha outra fisionomia através das janelas dos trens. Crianças pobres esperam doações à beira da linha férrea, soldados mutilados chegam às estações.

Um breve interlúdio com Chaplin é bruscamente interrompido pelas cenas em que Hitler é visto dando autógrafos da janela de um vagão. A II Guerra volta a alterar a paisagem da Europa, enquanto os trens (da morte) se prestam à deportação de judeus ou, depois, ao transporte de cadáveres e ao resgate dos sobreviventes de campos de concentração. Ao fim do conflito, a volta dos combatentes é um contraponto de emoção nas plataformas ferroviárias.

É uma pena que Trens não se estenda para além dos anos 1950. Mas ainda deu tempo de deixar patente, com o avanço da história e das máquinas, a evolução também do cinema  no rumo de uma tecnologia mais leve e de uma linguagem mais livre. As últimas cenas tocam o abstracionismo e o frescor dos novos cinemas que então se aproximavam. Assim, mais uma vez, essa bela colagem sublinha a intimidade poética entre os trens e o cinema.

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