FILHOS DO MANGUE
Em filmes como Kenoma e Narradores de Javé, Eliane Caffé já deu mostras da sua intenção de conjugar temas sociais com uma fabulação que os transcenda, tocando mesmo nas adjacências da metafísica. Filhos do Mangue se soma àqueles títulos com uma história de cafajestice, desorientação e redenção.
Tudo se passa numa localidade ribeirinha do Rio Grande do Norte que vive da pesca em águas e mangues. Um de seus moradores, Pedro Chão (Felipe Camargo), aparece como náufrago numa praia tendo perdido a memória. A comunidade o hostiliza e instala um julgamento popular, acusando-o de ter roubado dinheiro da pesca. Pedro é uma espécie de vilão da aldeia, responsável por explorar os pescadores na intermediação das vendas, facilitar o turismo sexual e o tráfico de mulheres, e ainda manter duas famílias na base da violência doméstica.
Desalojado e espezinhado por quase todos, tentando reunir os cacos de um passado totalmente esquecido, Pedro fica à deriva, à moda de um Robson Crusoé nordestino. A lama do mangue é o seu refúgio e cobrirá seu corpo como uma manta de purgação. Ele vai intrigar e maravilhar os demais com o erguimento de uma tenda de rede, trabalho de Sísifo que escapa a toda racionalidade. Nesse ponto, Filhos do Mangue dialoga com Kenoma, que abordava o desejo utópico de criar a máquina do movimento perpétuo.
Eliane Caffé trata aqui de questões graves que têm frequentado o cinema brasileiro, mas o faz de maneira original, um tanto oblíqua, enfatizando o desgarramento de Pedro e a polêmica instalada na comunidade – o que não deixa de lembrar as pelejas dos moradores em Narradores de Javé.
Não há nada de óbvio em Filhos do Mangue. A abertura para o improviso da cena e a recusa de uma estrutura mais fechada já lhe renderam a crítica de um filme “bagunçado”. Não vejo assim. Vejo a busca de se sintonizar com as visualidades e sonoridades da região, e de se alinhar com a percepção desnorteada de Pedro Chão. Uma câmera ansiosa e uma montagem brilhante da própria Eliane captam toda a riqueza da encenação com atores e atrizes profissionais e naturais em perfeita integração. A preparadora de elenco Marcia Lohss certamente merecia dividir com Eliane o prêmio de melhor direção recebido no Festival de Gramado.
Destaque especial para a atuação de Felipe Camargo, que supera um certo miscasting com uma contenção expressiva e ao mesmo tempo uma entrega física admiráveis. Com poucas falas e muita introspecção sugestiva, seu personagem se presta bem a essa parábola sobre a reconstrução de uma consciência nos embates com os seus semelhantes e com a natureza.
>> Filhos do Mangue está nos cinemas.

