Cuidados com o cuidado

TOQUE FAMILIAR

Muito embora não traga grandes novidades na abordagem cinematográfica da perda de memória no envelhecimento, Toque Familiar (Familiar Touch) escava um pequeno lugar próprio no tratamento do assunto. Mais do que transmitir ao espectador a desorientação do paciente, como fez o ótimo Meu Pai, o drama de Sarah Friedland procura falar da necessidade de adaptação que se apresenta tanto para o paciente, quanto para o seu entorno.

Ruth Goldman é uma chef idosa vista pela primeira vez com dificuldades para escolher um vestido com que receberá um visitante romântico. A identidade desse visitante é o primeiro sinal de que Ruth já não domina mais suas faculdades mentais. Levada para uma “casa de cuidados”, ela prossegue confundindo os papéis sociais e se inconforma com as condições de sua nova moradia coletiva.

Num filme mais convencional do que esse, Ruth certamente se tornaria a “gracinha” da casa, servindo como pivô de transformações na consciência dos demais. Felizmente, Toque Familiar não cai nesse lugar-comum. Mesmo evitando arestas de conflito, o filme ilustra o quanto é difícil conciliar a (i)lógica da demência com a lógica do mundo “normal”. Ao mesmo tempo, deixa claro que a perda de memória não se dá de maneira uniforme. Ruth, por exemplo, é capaz de não reconhecer o filho, mas pode lembrar em minúcias a receita de um borsch.

Sarah Friedland filmou numa casa de cuidados real, com a participação de hóspedes de verdade, com os quais a atriz Kathleen Chalfant interage eventualmente. Uma das melhores qualidades do filme, além das performances do elenco principal, é o estilo introspectivo da filmagem, que ecoa a introspecção da personagem central. Tudo é quase sempre silencioso, com movimentos de câmera  lentos em tempos dilatados e uma montagem descontínua que sugere a desagregação do real na ótica de Ruth. Como ela, vagamos entre fragmentos de conversas e solilóquios cuja origem desconhecemos.

O final em aberto sublinha o caráter do filme. Não se trata de uma tese, nem de um conto moral. O que temos é uma ficção que observa a realidade como o faria um documentário.

>> Toque Familiar está nos cinemas.    

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