A principal força e razão de ser de A Voz de Hind Rajab (Sawt Hind Rajab) está já no seu título. É o uso da voz real da menina de seis anos que pereceu sob tiros de soldados israelenses num posto de gasolina de Gaza, a 29 de janeiro de 2024. Hind ficou durante três longas horas presa dentro de um carro atingido por 355 balas, sobrevivendo ao lado de quatro parentes mortos. Alcançada por ligações telefônicas do Crescente Vermelho – o equivalente da Cruz Vermelha nos países islâmicos –, ela implorou pela salvação até a rajada fatal.
De posse da gravação dos telefonemas, a talentosíssima diretora tunisiana Kaouther Ben Hania encenou a outra ponta das ligações: a equipe do Crescente Vermelho que, de Ramallah, na Cisjordânia, tentava desesperadamente enviar socorristas até o local. Depois de terem perdido muitos socorristas atingidos por Israel, eles dependiam do estabelecimento de uma rota segura para a ambulância. A burocracia dessa coordenação, somada ao ataque à própria ambulância, selou o horror da tragédia.
Esse foi apenas um entre as centenas de casos semelhantes que ceifaram a vida de dezenas de milhares de crianças na investida vingativa do governo de Netanyahu. A angústia dos voluntários e da garota à beira da morte é uma metonímia poderosa do genocídio palestino. O filme foi aplaudido durante 23 minutos no Festival de Veneza, levou o Grande Prêmio do Júri e mais três láureas paralelas, e capturou o interesse de grandes estrelas de Hollywood, como Brad Pitt, Joaquin Phoenix, Rooney Mara, Alfonso Cuarón e Jonathan Glazer, que se aliaram como produtores executivos.
Kaouther Ben Hania é uma expert na interseção entre dramatização e eventos reais. Em O Homem que Vendeu sua Pele, inspirou-se na obra de um artista real de vanguarda para fazer um libelo provocativo sobre a objetificação de refugiados pelo discurso artístico. As Quatro Filhas de Olfa integrava duas atrizes a uma família real para fazerem os papéis de duas filhas desaparecidas. Em A Voz de Hind Rajab, ela articula à perfeição a gravação da voz da menina com a interpretação dos atores que tentam acalmá-la e prometem salvá-la.
O fato de não mostrar o lado de fora da central de operações do Crescente Vermelho, a não ser em flashes nos momentos finais, acentua a sensação de impotência dos voluntários, ao mesmo tempo que evita o pathos da destruição externa. Diante do filme, todos nós projetamos as imagens que conhecemos de Gaza devastada e da extrema dor palestina. A distância entre Ramallah e Gaza nunca é eliminada pela montagem, o que só potencializa o drama vivido nos dois lados. Um mapa mostrando o trajeto da ambulância, já perto do fim, é um efetivo instrumento de suspense.
Mas convém também pontuar que a concentração absoluta na sala de operações acaba por enfatizar tanto ou mais o estresse e o sofrimento dos voluntários do que o horror vivido por Hind. A câmera inquieta e os grandes closes de rostos transtornados perigam ser tão ou mais impactantes que os apelos e as palavras inocentes da menina.
Existe um filão de thrillers cinematográficos que exploram as tensões de uma sala de operações em detrimento da ação que se passa longe dali. Sejam viagens espaciais, seja monitoramento de salvamentos e de operações policiais. A Voz de Hind Rajab, a par de seu imenso valor de exposição e mobilização, pertence a esse gênero e corre os mesmos riscos.
Uma observação a mais: a Fundação Hind Rajab, estabelecida na Bélgica em 2024, se dedica a “quebrar o ciclo de impunidade de Israel e buscar justiça para todas as vítimas do genocídio de Gaza”. Para quem quiser visualizar a outra ponta do episódio, eles publicaram um pequeno vídeo gerado por IA com os últimos momentos de Hind.

