Os brios dos cineastas brasileiros foram atingidos esta semana por uma entrevista do crítico francês Jean-Michel Frodon à Folha de S. Paulo. Convidado para o júri da Mostra Internacional de Cinema de SP, Frodon, ex-colunista do Le Monde e ex-diretor da Cahiers du Cinéma, desancou a produção brasileira com palavras duras:
FOLHA – Como vai o cinema brasileiro?
JEAN-MICHEL FRODON – É um cinema sem maior brilho. Vi alguns documentários interessantes, mas o cinema brasileiro não é tão bom quanto poderia ser, ou o quanto imaginamos que seria. O último filme brasileiro do qual eu gostei foi “Mutum”.FOLHA – Houve algum momento, além do cinema novo, em que o Brasil chamou a atenção da crítica internacional?
FRODON – Havia muita expectativa quando o Brasil voltou a ser um país democrático e, depois, a esperança de que o fenômeno Walter Salles não fosse isolado. Mas a promessa não se cumpriu. A Globo soube tirar vantagem do desenvolvimento do país e isso teve efeitos sobre o cinema.FOLHA – Por que o cinema brasileiro era visto como promessa?
FRODON – Porque o Brasil parece um país obviamente feito para o cinema. As paisagens, a riqueza cultural, a genialidade de um diretor como Mário Peixoto… Alguém poderia até questionar o seguinte: os mesmos ingredientes que fazem o futebol brasileiro ser único não poderiam ser também utilizados no cinema? O Brasil vem ganhando visibilidade internacional e poderia traduzir esse movimento histórico em filmes, mas, ao contrário da China e de outros países asiáticos, não tem feito isso.
Dois dias depois da publicação da entrevista, Cacá Diegues respondeu com um artigo substantivo, onde atacava o “colonialismo cultural” embutido nos argumentos de Frodon. Eis um trecho:
Claro que não somos imunes ao erro, mas estamos fazendo nossos filmes com diversidade, sem dogmas ou fronteiras intransponíveis, sem modelo único. Aprisionar esse cinema num projeto exclusivo, a partir de um arquivo ideológico arcaico, é um crime colonial que não devia mais caber no século 21.
Murilo Salles foi outro que protestou, em conversa comigo por e-mail:
“Esses caras ainda falam da gente com um olhar caduco, pior, desinteressado (ou pior ainda: preguiçoso!), estereotipado e codificado nos anos 70…! Acham que só eles podem falar de ser humano, de processo civilizatório, enfim continuam coloniais. E a coisa está piorando pro lado do Brasil, porque a gente COMPETE, a gente tem PENSAMENTO PRÓPRIO, tem processo CULTURAL com dinâmica própria – aliás com mais potência que a francesa atualmente…., e agora estamos aprendendo (com o Lula) a ter auto-estima.”
“A gente pode fazer uma lista de filmes para o Frodon assistir. E propor ao Leon Cakoff que providencie as cópias em DVD e envie para ele”.
Pois é. De minha parte, acho mesmo que Frodon foi muito infeliz. As referências a paisagens, futebol e Mário Peixoto traem uma expectativa necrosada em estereótipos de uma visão europeia do Brasil tropical. Ou seja, devemos ficar na etnografia ou na experimentação. É isso o “tão bom quanto poderia ser, ou o quanto imaginamos que seria”. Taí o típico europeu que rejeita a internacionalização de países periféricos, pois esta seria uma prerrogativa exclusiva do Primeiro Mundo. Opiniões geradas numa torre de cristal.
Será que Frodon conhece mesmo o trabalho de Karim Aïnouz, Marcelo Gomes, Beto Brant, Claudio Assis, Lírio Ferreira, Murilo Salles, Gustavo Spolidoro, Cao Guimarães, Marcos Jorge, José Eduardo Belmonte e tantos outros cineastas que têm colocado o Brasil em nível de qualidade e diversidade compatível com a cena cinematográfica internacional? Admira um crítico respeitado e criterioso como ele manifestar-se com tal leviandade sobre um assunto em que não está atualizado.
No mais das vezes o patriotismo entre os “brazucas” acontece diante da televisão com a seleção brasileira de futebol em campo. É quando a “pátria de chuteiras” entoa a plenos pulmões “o patria amada Brasil”. Vez por outra, quando algum estrangeiro comete o “crime” de fazer alguma crítica ou apontar o dedo em direção a algum problema é também possível ouvir e ler manifestações um tanto exageradas e descoladas do real.
Esse foi o caso, por exemplo, do jornalista americano que ousou mencionar o apetite etílico do presidente Lula. Foi um Deus nos acuda. Agora, algo semelhante, mas com armas de menor calibre, alguns bons diretores do cinema brasileiro abriram escaramuças contra o crítico de cinema francês Jean-Mechel Frodon que, em entrevista durante a realização da 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ousou dizer que o cinema brasileiro não anda lá essas coisas. Se isso é dito por um crítico brasileiro vá lá. Ou melhor, se o público brasileiro diz isso com toda a clareza, não frequentando as salas de cinema, deixa a coisa rolar até a próxima produção com lei de incentivo. Mas, ousadia, um estrangeiro vir falar de nossa produção, em nossa casa. Isso não está certo. É isso que fica claro nas manifestações que consegui acompanhar neste que considero um anti climax, um “anti-affair”. O levante, claro, não tem a estatura e o trovejar do polemista Glauber Rocha, mas assim mesmo, sua dimensão pode ser considerada exagerada. Isso amplifica a repercussão suposta crítica do francês teve ou teria entre nós. Apenas os iniciados puderam tomar contato com o assunto. Dessa forma foi “jogar sal em carne podre” como diz um dito popular.
Mas, embora seja fato de que existem muitos bons diretores, filmes, produções bem acabadas, diversidade temática, regionalismo de produção, é fato também que o cinema brasileiro não tem conseguido mostrar a cara do brasileiro com uma “cinematografia que podemos chamar de brasileira”. E olhe que não tem faltado pobre, tiroteio, belezas naturais e sensualidade nas telas.
Não sei se isso tem a ver com as leis de incentivo, patrocínios governamentais, preguiça intelectual, ausência de ousadia, falta de experimentação, roteiros insubisistentes, individualismo, excesso de documentarismo para contar histórias de brasileiros ilustres e outros nem tanto, culpa da globalização, domesticação frente “ao melhor dos mundos” em que vivemos conforme projetado pela propaganda oficial, enfim, encontrar as explicações não é fácil. Porém, será bastante instrutivo procurar não na crítica de Frodon, mas na própria produção brasileira, as possíveis causas que levam a um estrangeiro que – mesmo não conhecendo toda a produção de fulano, siclano e beltrano -, consegue trazer uma ponderação crítica e como tal é preciso debruçar nossas atenções e buscar explicações.
Não estou aqui avaliando se que o Frodon menciona foi suficientemente carregado de peso e conteúdo. Pode ter sido até um tanto leviano. Contudo, de nossa parte, aliás, da parte dos produtores e criadores do cinema nacional se espera uma atitude menos cheia de rancor, belicismo e repleta de conceitos e fundamentação sobre o que é a cinematografia brasileira hoje.
Ah, posso dizer que talvez a minha manifestação, que já vai longa, não expresse o quadro real do cinema nacional, pois não sou crítico e também não possuo os números, as informações dos bastidores da miriade de produtores e realizadores espalhados pelo território nacional. E, não quero e não posso fazer tábula rasa da produção nacional. Mas, como diz a canção “todo o artista deve ir aonde o povo está”. Para os comerciantes isso também é válido, ou seja, para aqueles que fazem o cinema mais indústrial. Portanto, vamos refletir e produzir manifestações com mais conteúdo e menos rancor.
Sds,
Paulo Antunes
Caro Paulo, obrigado pelos seus comentários. De minha parte, eu faria a mesma crítica ao pronunciamento do Frodon caso ele saísse da boca de um importante crítico brasileiro, que certamente estaria tão desinformado quanto ele. O problema aqui não é a nacionalidade do crítico, mas a leviandade com que ele se manifestou e os modelos que parecem reger suas expectativas quanto ao cinema brasileiro. Esta é a grande questão. Será que o cinema que queremos/precisamos é o mesmo que ele espera?
De resto, acho que você confunde as coisas quando toma como medida dos erros do nosso cinema o fato de que o público brasileiro não o prestigiaria. Para começar, essa é uma questão de todos os cinemas nacionais, exceto o americano, o indiano e, em alguns momentos, o francês. Os demais lutam contra a hegemonia do mercado internacional para impor as produções locais, assim como o Brasil. Por outro lado, quando a crítica se faz a respeito da qualidade dos filmes, não é necessariamente a bilheteria a medida correta. Se assim fosse, estaríamos muito bem com as franquias e comédias televisivas que temos por aí (e olhe que nem todas são execráveis).
Quando se trata de avaliação crítica e percepção de um cinema nacional na cena mundial, o fator público conta bem menos que outros dados de personalidade, autoralidade, importância cultural etc. E nesses capítulos, basta citar “Santiago” (1º prêmio no Cinéma du Reel francês), “Jogo de Cena”, “Nome Próprio”, “Serras da Desordem”, “Se Nada Mais Der Certo”, “O Céu de Suely”, “Amarelo Manga”, “Árido Movie”, “Lavoura Arcaica”, “Linha de Passe”, “Cidade de Deus”, “Entre a Luz e a Sombra” etc para evidenciar, para quem conhece, uma cinematografia digna e moderna. E olhe que ainda não vi diversos filmes elogiados na nova safra.
Enfim, cada um entra nessa discussão com seu background não só de conhecimento, mas também de amor pela própria cultura e interesse em valorizar o que ela tem de bom. Para muitos estrangeiros, o Brasil é somente o país do samba – e quantos de nós não nos levantaríamos para afirmar que nossa música (esta bem mais amada que nosso cinema) não é só isso?
Vou contar uma outra história que ouvi antes do caso Frodon e que talvez tenha alguma analogia com este episódio (ao qual estão dando mais importância do que merecia, assim como se dá muto espaço e repercussão às opiniões muitíssimo idiossincrásicas e autocentradas do compositor-cantor-opinador Caetano Velloso como se fosse o oráculo supremo que sabe tudo sobre tudo e sobre todos). A história: um vendedor esperto (conhece muito de cinema e bastante coisa de música) da loja “Arlequim” no Paço Imperial do Rio me contou que um (também) francês procurou um filme brasileiro, não lembro qual, mas que não foi lançado em dvd como ele esperava encontrar aqui. Ao ser informado que nem no Brasil havia o tal filme em DVD, o francês teria repetido o (antigo clichê) “O Brasil é mesmo um país sem memória”. O vendedor então o fez lembrar que muitos filmes franceses importantes também não são lançados em DVD na França, mas a Criterion Collection os lança nos EUA – e os franceses cinéfilos precisam comprar tais DVDs de seus próprios filmes via USA. Lembrei que em 2001, em Paris, eu não encontrei vários CDs de trilhas sonoras de filmes franceses que eu esperava encontrar, desde as trilhas dos musicais de Jacques Demy-Michel Legrand até a trilha do então relativamente recente “Alice et Martin”, do Philippe Sarde para o filme do André Téchiné. Já soundtracks de filmes norteamericanos sobravam nas prateleiras das lojas da Virgin e fnac’s… Encontrei alguns CDs em sebos… Ou seja, é fácil para os franceses falarem da indiferença cultural alheia. Mas que o Cinema Brasileiro de ficção não anda tão bem das pernas, infelizmente, me parece que é fato. Só que ficaram tão melindrados com essa opinião estrangeira !… Já ouvi dizer que o cara nem é tão bom assim no métier, que “enterrou” o “Cahiers”, etc etc… E daí? Desqualificá-lo é “saída” de quem não teve argumentos para polemizar devidamente. Desculpem, escrevi demais.