O sistema e a bolinha de papel

Neste sábado, de 14h30 às 17h, a 14ª Mostra de Cinema de Tiradentes vai formar uma mesa para debater as relações entre estética e política no cinema brasileiro contemporâneo. Vou participar junto com os críticos e pesquisadores Cezar Migliorin, Claudia Mesquita e Francis Vogner dos Reis, mediados pelo curador do festival, o crítico Cleber Eduardo. Para o catálogo da mostra, preparei o seguinte texto sobre alguns diálogos entre audiovisual e política nas temporadas 2009 e 2010: 

 

 

 

 

 

 

O sucesso estrondoso leva Tropa de Elite 2 a frequentar quase todas as conversas sobre o cinema brasileiro do momento. Mas daí a apontá-lo como “o” filme político da temporada vai, no mínimo, uma discussão. As inquietações políticas que perpassam o filme de José Padilha são meras repercussões da caixa de ressonância social quando se fala de criminalidade x ordem. O drama do Capitão Nascimento acolhe uma certa percepção da classe média urbana segundo a qual as mazelas são resultado de um emaranhado de razões, resumidas no conceito de “a política”. Ou, conforme o jargão neo-sessentista do filme, “o sistema”.

O diagnóstico de sistema doente, no fundo, aplaca a inquietação, pois exime-se de localizar personagens e pontos de crucialidade. Estabelece-se uma cadeia de conexões que vai do bandidinho ou do policial menor, passando pela mídia, até as esferas maiores de poder – concluindo, é claro, com um sobrevoo acusatório de Brasília. Em troca da discussão, temos a catarse promovida pela constatação de que “está tudo errado”. A política como um todo sai desqualificada.

Tropa 2 teve, no entanto, um valor considerável na arena da política cultural quando aqueceu os números da ocupação do mercado pelo filme nacional. Assim forneceu “dados concretos” para que o cinema brasileiro chegasse fortalecido à aurora de um novo governo e um novo Ministério da Cultura.

Nesse mesmo diapasão, um filme como 5 x Favela – Agora por Nós Mesmos assume um papel político bem mais importante do que a maioria daqueles que se dispuseram a “falar de política”. Os meninos do Cacá bancaram uma afirmação da voz comunitária não apenas como interferência exótica no fluxo das emissões mainstream, mas como uma emissão em si, capaz de disputar espaço nos cinemas de shopping como nos tabuleiros de DVDs piratas.     

Com o retrovisor ajustado na temporada 2009/2010, reencontramos José Padilha com o documentário Garapa, que eu interpreto como uma tentativa de desmentir o alcance da política social do Governo Lula no Nordeste ou mesmo um contraponto (estético e político) à narrativa edificante de Lula, o Filho do Brasil. Esta polarização, entretanto, não encontra eco no banho-maria dos demais lançamentos.

Como nos últimos anos, predominaram as revisitas ao período ditatorial e a outros momentos da História do país, com mínima repercussão na atualidade. Utopia e Barbárie, de Silvio Tendler, foi dos poucos a tentar uma articulação entre passado e presente. Mesmo um filme poderoso e raro como Cidadão Boilesen, de Chaim Litevski, tinha sua eficácia circunscrita ao campo do filme histórico. Da mesma forma, o tocante Diário de uma Busca, de Flávia Castro, limitava seu raio de ação ao resgate pessoal e a um lapso temporal demarcado.

A análise do fazer político, incrementada ultimamente pelos filmes de campanha, teve dois títulos circulando em festivais: Os Representantes, de Felipe Lacerda, e Arquitetos do Poder, de Vicente Ferraz e Alessandra Aldé. Mais no primeiro que no segundo, as ferramentas do cinema documental serviram para nos aproximar de certas práticas político-eleitorais, ainda que sem revelar grandes novidades para quem acompanha o noticiário jornalístico.

A campanha eleitoral de 2010, aliás, foi o terreno por excelência da guerra audiovisual, travada principalmente no circuito televisão-internet. O episódio da bolinha de papel explicitou claramente o combate entre o poder instituído dos grandes canais de TV e a guerrilha cibernética, cada qual defendendo – ou mesmo forjando – suas versões no quadro de uma disputa pela evidência de “verdade”. Não sei se em algum outro momento da História política brasileira o registro da imagem em movimento assumiu tal protagonismo, projetando-se para as esferas da moral, da crônica pitoresca e da influência sobre os destinos da nação.

Pachamama, de Eryk Rocha, Olhos Azuis, de José Joffily, e o doc A Chave da Casa, de Paschoal Samora e Stela Grisotti (sobre imigrantes palestinos no Brasil), se destacaram por implicar em sua temática o lugar político do Brasil no cenário internacional. Destacaram-se sobretudo pela raridade com que o cinema brasileiro se abre para questões de além-fronteira, mesmo agora que o país reivindica um papel mais definidor no cast mundial.

É óbvia também a dimensão política de certas observações de classe, como as levadas a cabo por Sérgio Bianchi (Os Inquilinos), Gabriel Mascaro (Um Lugar ao Sol) e Marcelo Pedroso (Pacific). Ou de uma evocação artístico-histórica como Dzi Croquetes, o mais político da safra recente de docs musicais. Mas não quero aqui somar argumentos ao velho clichê de que “tudo é político”. Reconheço gradações fundamentais entre filmes que apenas tangenciam esse campo ao tratarem de questões antropológicas, existenciais e culturais; os que confrontam diretamente assuntos da política; e ainda aqueles que se propõem a ter, eles próprios, um desempenho político.

Um misto de descrença no papel extracinematográfico do cinema, individualismo blasé e interesse comercial responde talvez pela baixa incidência de filmes com ambições de intervenção política no Brasil de hoje. Mesmo a expressão de inquietações políticas passa por um filtro de espetacularização e “humanização” (Salve Geral é um bom exemplo), quando não esboroa em formatos desprovidos de empatia (o doc Luto como Mãe é um caso).      

Daí a conveniência de citar, como exceção à regra, o doc paulista O Abraço Corporativo. Para denunciar a vulnerabilidade da mídia ao “novidadismo” e à “superfluocracia” (os termos entre aspas são meus), o diretor Ricardo Kauffman, um jornalista de economia, criou um fictício consultor de recursos humanos e uma fictícia Teoria do Abraço Corporativo, e colocou-os na roda dos eventos midiáticos. O filme acompanha o processo em que a lebre é comprada como gato por importantes jornais e canais de TV. Ao constituir-se como peça de intervenção na realidade e expor os resultados, o filme descortina modos e manias de uma imprensa que se arvora em instituição política de primeira grandeza.

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