Out of Africa

Impressões apressadas de um turista leviano. Fotos de CAM e Rosane Nicolau
Guardiã da antiga casa de Mandela em Soweto

Não nego que desembarquei na África do Sul com algumas ideias preconcebidas. Ah, o perigo das grandes cidades, a boa convivência de negros e brancos pós-apartheid, a expectativa de ineficiências “tipicamente africanas”. É claro que eu não estaria começando esse texto assim se tudo isso não tivesse sido solenemente desmentido durante a viagem.

O maior perigo de fazer turismo no país de Mandela é não conhecer parte importante do país real. A indústria do turismo, como quase todas no país, está nas mãos de brancos, muito embora as mãos que carregam malas e fazem o trabalho duro sejam sempre pretas. Quase todos os serviços que utilizei funcionavam extremamente bem. Os preparativos para a Copa de 2010 deixaram sedosas as principais estradas e ainda mais modernas as grandes cidades. As pessoas são gentis, simpáticas e educadíssimas. Nos tours privados que contratei, tive sempre guias brancos, dos quais tentei extrair impressões as mais diversas sobre o país, seu cotidiano e sua história recente. Não deixei de aproveitar também o contato com taxistas e outros cidadãos de cor negra para ter uma ideia do que eles pensam. Pretendo desenvolver minhas impressões sobre os ecos do apartheid num artigo especial para o Balaio de Notícias do meu amigo Paulo Lima. Por ora, vou ficando com as observações mais descompromissadas a respeito de um país fascinante sob muitos aspectos. A beleza natural, por exemplo.

Museu do Apartheid

Quem limita seu interesse na badalada – e linda, chique, sedutora – Cape Town deixa de conhecer o espetáculo do norte. Não exatamente por Johannesburg, onde o dinheiro grosso do país é consumido em enormes shopping centers ou na compra de mansões com cercas eletrificadas nos “subúrbios” ricos. A chamada Joburg (ou Jozi) vale mesmo pelo eloquente Museu do Apartheid, onde a experiência do visitante começa já na entrada “segregada” entre supostos negros e brancos, e pela oportunidade de conhecer Soweto, a antiga township (favela) de importância histórica na luta contra o regime racista e hoje uma cidade-dentro-da-cidade, com suas próprias diferenças de classe.

Church Square, Pretória

Tampouco Pretória, a capital do poder executivo, merece mais que uma passada rápida para ver os Union Buildings, o impressionante Monumento aos Vortrekker (os pioneiros holandeses que desbravaram o norte do país, mais ou menos como os bandeirantes brasileiros) e sentir a atmosfera muito citadina da Church Square, o centrão da cidade.

Blyde River Canyon

O espetáculo do norte começa quando se sai de Johannesburg rumo à rústica e belíssima região de Mpumalanga. São imensas planícies “abraçadas” pelas imponentes montanhas Drakensberg, onde vegetação e rochas exibem mais cores que os panos das mulheres nas aldeias e beiras de estrada. Ali a gente começa a saborear os nomes das línguas xhosa e zulu que começam por “m” seguido de uma consoante: Mbazwana, Mkambati, Mlawula, Mtunzini… A rota rumo ao Parque Kruger passa por algumas paisagens inacreditáveis, como as formações rochosas do Canyon do Rio Blyde. Não é à toa que os sul-africanos chamam essa área de “Panorama Region”.

Contatos quase íntimos no Parque Kruger

Passamos dois dias cruzando as estradas do Kruger à cata de animais selvagens. Sem nunca repetir um trecho, e só na parte sul, que é a mais interessante. Nossa guia nessa etapa, uma italiana que cresceu na Argentina, tinha olhos de lince para identificar de rinocerontes a pássaros exóticos em meio à densa vegetação do parque. Meus olhos aprenderam a rastrear a selva com o carro em movimento e perceber os deslocamentos e as variações de cor que indicam a presença de um elefante ou um pequeno antílope nas proximidades. Ou uma girafa na planície longínqua. A emoção de subitamente deparar-se com um guepardo posando para você na beira da estrada, ou uma leoa aproveitando o farol do carro para cercar sua presa, compensa regiamente os longos períodos de busca e espera. Os game drives não são safáris, pois não há caça, mas dão o prazer simbólico do encontro com os animais libertos no seu próprio habitat.

Cena de estrada na Suazilândia

À saída do Kruger, entramos no reino da Suazilândia, um pequeno país inteiramente cercado pela África do Sul e Moçambique. O rei por lá está em apuros, sob pressão de ativistas que querem derrubar a extemporânea monarquia absolutista e pôr fim à corrupção. Mas como turistas não são afetados por essas coisas, cruzamos tranquilamente Swazi de cima a baixo em um dia, com uma noite no encantador e ultra-britânico hotel Foresters Arms. O país tem aparência serena, com montanhas verdejantes, lojinhas de artesanato por todo canto e gente que gosta de acenar para os carros na estrada. Costuma ser chamado, não sem razão, de “Suíça africana”.   

Meninas zulus

 Em seguida, entramos no antigo reino de Shaka, o mítico soberano que fez a glória do povo Zulu no início do século19. A vasta região que ele unificou e comandou corresponde hoje à província de KwaZulu-Natal (credite-se aos portugueses o segundo nome). O culto às tradições tribais é mais forte aqui do que em qualquer outra parte da África do Sul. Língua, dança, roupas e mitos históricos fazem parte de todo programa ou conversa na Zululand. A capital da província é Durban, cidade vistosa e moderníssima, com uma tal extensão de praia que deixa Leme, Copacabana e Ipanema parecendo uma piscina.

Pescadores em Durban

Durban é, depois de Cape Town, a cidade mais etnicamente diversificada do país. O grande contingente de indianos dá um colorido especial às vestimentas, à culinária, às práticas religiosas e às maneiras locais. Duas pequenas façanhas marcaram minha passagem: subir ao arco do novo estádio Moses Mabhida, de onde se vê toda a cidade mas não o interior do estádio, e localizar uma pequena e curiosa estátua de Fernando Pessoa (com a cabeça vazada) que quase ninguém percebe numa esquina do centro.

Cape Town aos meus pés

Em Cape Town, finalmente, rendi-me à evidência de que é um páreo muito duro para o Rio de Janeiro como maravilha natural. Ela se recosta à Table Mountain e à sua respectiva reserva florestal, transbordando de beleza, informalidade e confiança. Quase sem perceber, saímos da cidade e passamos ao cabo através da famosa Península que leva ao Cabo da Boa Esperança. O panorama é de tirar o fôlego a cada curva do caminho. Um mar de prata, montanhas caprichosas, vegetação luxuriante de aloes, fynbos e flores formam um cenário que não tenho palavras para descrever. Se do lado da Península, a beleza é acidentada e envolvente, do outro lado, o dos vinhedos, a vista se perde na ondulação das colinas e na elegância da arquitetura dutch manor. As degustações do excelente vinho sul-africano se dão tanto nas grandes vinícolas tradicionais, como nas pequenas particulares. Diz-se que o sul-africano plenamente realizado é aquele que consegue tudo na vida e depois vai fazer o seu próprio vinho.

Nem todos são realizados, é claro. A população predominante é de coloureds (mestiços, ou mais precisamente mulatos), e a maior parte dela vive em imensas townships, que vemos à margem das autopistas como contrapontos da afluência e da plasticidade de Cape Town. Fiz lá um programa meio constrangedor, que é visitar favela como turista. Mas, nas circunstâncias, era a única maneira de entrar nesse lado da cidade, onde barracos se misturam com casas bem construídas e a vida tem um sabor interiorano. Os gangsteres estão ali misturados com as crianças, a gente sabe, mas passa com cara de bobo, como se percorresse uma exposição de arte étnica.

A palheta de Bo-Kaap

Cape Town tem ótimos museus, mas nenhum tão comovente quanto o Museu do District 6, que conta as remoções dos negros na época do apartheid. Seria um bom exemplo a ser seguido pelo Observatório de Favelas para criar uma memória das remoções cariocas dos anos 1960. Outra boa atração é o bairro Bo-Kaap, onde se localiza a comunidade de origem malaia. As casas são pintadas em cores vivas e contrastantes, há mesquitas sonolentas e velhos armazéns vendendo de frutas secas a catecismos islâmicos. Os quatro dias que passamos na “Mother City” e suas redondezas foram poucos para tudo o que a cidade tinha a oferecer. O remédio é voltar um dia, quem sabe.

Fazenda na Garden Route

Nossa viagem se completou com um giro de três dias pela famosa Garden Route (Rota Jardim), um trecho a leste de Cape Town que vai até o balneário de Knysna. É um passeio relaxante entre vinhedos, fazendas de avestruzes, bosques de eucaliptos, pastos sem fim dourados pelo sol, pequenas cidades antigas e requintadas (Stellenbosch, Swellendam, Hermanus), praias deslumbrantes no Oceano Índico e as incríveis Cavernas Kango, gigantescas catedrais de estalactites e estalagmites.

Em outro post, pretendo falar da visita a Maputo, Moçambique, onde nossa experiência foi bastante diversa do turismo convencional na África do Sul.

Para terminar, uma listinha de iguarias típicas que provei na viagem:

Game kebab: uma brochete com carne dos antílopes impala, springbok, kudu e wild beast
– Filé de avestruz à moda de Oudtshoorn
– Frango peri-peri, receita moçambicana e apimentada
– Caril de caranguejo e camarão, outra delícia de Moçambique
Bunny chow: pão de forma escavado e preenchido com ensopado de carneiro, lanche indiano muito popular em Durban
Biltong: carne seca de animal (qualquer um) cortada em tiras e vendida até em butique de shopping center     
– Bicho-da-seda inteiro fritinho (eles chamam de “mopane worms”)
– Pudim de malva (uma das melhores sobremesas do mundo!)
– Carpaccio de goiabada
– Amendoim recoberto com wasabi (a raiz forte japonesa)
– Chá roibos: uma delícia nacional, feita com o arbusto vermelho homônimo.

Antes que alguém diga “esse cara tem estômago de avestruz”, apresso-me a explicar: os avestruzes comem pedras porque são elas que trituram as comidas para eles dentro do estômago. Coisas que se aprende numa viagem à África. 

7 comentários sobre “Out of Africa

  1. beleza.. e confiança. Que lindo parecer, confiança.
    As fotos são vivas, diferente daquelas de catálogos q são só lindas.
    O cardápio tb é bem apetitoso. Valeu!

  2. Deu tempo para ter uma idéia de como é tratado o cinema africano por lá? Os blockbusters americanos dominam as telas? E filmes africanos e/ou sul-africanos tem grande ( ou o seu) espaço?

    Boa volta. Dizem que quando a gente viaja assim, o corpo vem de avião e a alma vem de navio. A alma já chegou?

    Abraços,
    Nelson

    • Oi Nelson
      Não pesquisei a presença nas salas de cinema, mas nas lojas de DVDs há sempre um bom espaço para os filmes sul-africanos (não tanto de outros países da África). Os blockbusters globais estão lá, como em todo lugar, e o maior sucesso durante minha estada era justamente RIO, a animação.
      A alma está chegando aos poucos, mas já vai partir na semana que vem para Cabo Verde.
      Abs

  3. fui para a cidade do cabo em 2008, aos 18 anos, e fiquei por lá um mês. minha mãe me oferecera um curso de inglês no canadá porque não quis fazer a viagem de formatura do colégio. perguntei a ela se podia mudar pra áfrica do sul e foi uma das melhores coisas que fiz. claro, me restringi à cidade mais turística do país, mas fiz questão de não me restringir a grupos de brasileiros e tentei vivenciar a áfrica do sul que tinha por perto. fui com algumas idéias (como a do bom convívio atualmente entre negros e brancos) que não se mantiveram em pé; outras que me disseram – como que eu não deveria andar sozinha na rua – eu desafiei e não me arrependo. todas as pessoas com quem conversei por lá foram tão queridas comigo! quando voltei, li “vida e época de michael k.” do coetzee e que se passa em cape town. se você não leu, olha, recomendo vivamente. independente da viagem, inclusive, é um texto muito universalizante. espero um dia poder voltar e conhecer o país mais profundamente.

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