O penúltimo Raul Ruiz

Mistérios de Lisboa

Paris está velando hoje o corpo de Raul Ruiz (1941-2011). Autor da que talvez seja a melhor adaptação de Proust para o cinema, O Tempo Reencontrado, aquele chileno expatriado tinha no cinema a sua pátria, assim como Fernando Pessoa dizia ter na língua portuguesa a sua. Relacionando constantemente o cinema com a literatura e a pintura, Ruiz foi um dos derradeiros mestres de uma geração que via a arte como um complexo em vez de uma especialização. Em 48 anos de carreira, fez mais de 100 filmes, dos quais nove longas em Portugal. Um deles foi o seu penúltimo, Mistérios de Lisboa, onde não se vê traço do diretor doente e debilitado que já se encontrava por trás das câmeras.

Duram seis horas a minissérie de TV e quatro horas e meia a versão menor (para cinemas) de Mistérios de Lisboa. Mesmo esta é programa exigente – não tanto pela metragem, mas principalmente pela imbricação de diversas histórias e personagens. Tive a sensação de que assistia a um mil-folhas cinematográfico cujas camadas sobrepostas exigem do espectador atenção de coruja e memória de elefante.

O romance de Camilo Castelo Branco envolve pares e rivalidades românticas de Portugal, Itália e França – com referências ainda ao Brasil – no século 19. Alguns personagens centrais ainda se desdobram em diversas identidades ao longo de suas vidas, contribuindo para o aspecto folhetinesco. Muda-se de idioma com a mesma facilidade com que se troca de roupa, já que os figurinos de época são um dos grandes atrativos da produção de Paulo Branco.

Era mesmo de se esperar que Ruiz lançasse mão de elementos tão sinuosos para exercitar sua verve barroca. De alguma maneira, o barroquismo oprime e ao mesmo tempo alivia o filme. De um lado, temos as circunvoluções narrativas que desafiam a capacidade de assimilação do espectador (eu admito que me perdi irremediavelmente entre famílias, épocas e lugares). De outro lado, temos o estilo inconfundível do diretor, que concilia garbo e humor numa fórmula muito pessoal.

Nos filmes de Ruiz estamos sempre diante de uma representação assumida também como comentário sobre a representação. Diversas sequências de Mistérios de Lisboa são introduzidas por uma miniaturização em microteatro de papel. Outras ganham “molduras” improváveis. Uma luta corporal é vista somente através do pequeno quadrado da janela de uma caleça. A conversa clandestina de um casal é mostrada pela fresta de uma cortina de alcova, que se desloca para acompanhar os atores sem que haja ninguém por trás dela a indicar um ponto de vista. Ruiz não precisava “justificar” racionalmente sua linguagem. Nisso residia boa parte de sua personalidade autoral: uma liberdade quase absoluta para escolher onde botar a câmera e como movê-la dentro da cena. Mistérios de Lisboa tem alguns de seus mais memoráveis planos contínuos conjugando movimentos elegantes e paralisações milimetricamente precisas.

Essa liberdade abrange até mesmo a criação de uma cena tão desconcertante quanto a que encerra uma sequência de duelo. Depois que os contendores mudam de ideia, suspendem o duelo e se retiram do local, um personagem não identificado ocupa o centro do quadro e se mata com um tiro no peito. Corta e não se fala mais nisso. É como o J. Pinto Fernandes da Quadrilha de Drummond.

Os jogos, os paradoxos, as línguas raras e as cidades imaginárias eram outras paixões que faziam a singularidade de Raul Ruiz. Um cineasta do mundo, de vários mundos. Depois de Mistérios de Lisboa e La Noche Enfrente (este em pós-produção), vai ser triste não mais esperar um novo filme seu.

2 comentários sobre “O penúltimo Raul Ruiz

  1. O texto, conteúdo e forma, é todo impecavelmente bem arrematado, sempre é um prazer seguir seus rastros. Mas me divirto ainda mais quando no meio vem uma costurinha deliciosa de piá como: “tive a sensação de que assistia a um mil-folhas cinematográfico cujas camadas sobrepostas exigem do espectador atenção de coruja e memória de elefante”. Ou ainda provocações malandruchas como “não sei quanto tempo eu estaria preparado para suportar a visão direta de Deus, caso ele existisse.” Como se diz na vila: bem bom, daí.

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