Waldemar Lima, o fotógrafo de Deus e o Diabo na Terra do Sol, e Linduarte Noronha, diretor de Aruanda, morreram recentemente no espaço de pouco mais de uma semana. Ambos tinham a ver com a descoberta de uma luz especificamente brasileira para o cinema, ali na primeira metade dos anos 1960. Hoje publico aqui um texto que Waldemar escreveu especialmente para a dissertação de mestrado de Iara Magalhães, de Uberlândia (MG). Essa preciosidade me chegou às mãos através de Joel Pizzini, a quem agradeço.
LUZ TROPICAL BRASILEIRA
Waldemar Lima
A qualidade da luz do sol, originalmente branca, que chega à terra, pode ser dura ou suave dependendo da incidência e da largura da camada atmosférica que ela atravessa. Nas regiões tropicais, a largura da atmosfera é estreita, a luz do sol a atravessa perpendicularmente e chega à superfície da terra como uma luz dura e branca com sombras negras e cores fortes.
Se não houvesse absolutamente nada no espaço terrestre, nem poeira nem gases (como acontece no espaço sideral), o céu seria negro. A luz do sol, ao atravessar a atmosfera terrestre, encontra moléculas de gases de várias densidades, poeira e minúsculas gotas de água em suspensão, que refletem, refratam, difundem e dispersam a luz. O céu tem, dependendo da hora do dia e da região, luz de diferentes intensidades. As minúsculas gotas de água em suspensão são os principais dispersadores das ondas luminosas curtas (a extremidade azul de espectro) e responsáveis pela tonalidade azulada do céu.
As variações das condições atmosféricas também provocam mudança de cores nos objetos sobre a terra. Quando o sol está alto e a atmosfera relativamente limpa e seca, ele aparece quase branco e o céu azul bem escuro. À medida que o sol abaixa no horizonte, sua luz chega à terra num ângulo mais agudo. Nesta angulação, a luz solar atravessa maior quantidade de poeira e vapor, sendo assim, grande parte da cor azul é subtraída.
Na natureza geralmente as cores se produzem por reflexão. A luz branca que atinge um meio reflete com maior intensidade algumas áreas do espectro em detrimento de outras. Quando a luz branca do sol incide numa planta ou árvore, a clorofila seletivamente absorve mais azul e vermelho e reflete mais verde. Quando incide num fruto, ou flor de cor vermelha, também ocorre o mesmo processo seletivo, o azul e o verde são absorvidos e o vermelho é refletido. As mudanças das condições atmosféricas, assim como a intensidade e a posição do sol no céu, modificam as cores e os objetos.
Podemos também afirmar que a luz solar varia nas mais diversas regiões do planeta terra. Senão vejamos: nas regiões tropicais onde sua incidência é perpendicular, ela é dura e cria cores e texturas fortes, e o sol está sempre no zênite. De outra maneira, nas regiões subtropicais a incidência é mais inclinada, a luz solar é mais suave, é menos dura.
Vejamos alguns exemplos. O meridiano que separa a região tropical e a subtropical no Brasil passa acima da cidade de São Paulo, logicamente não poderemos afirmar que de um lado é região tropical e de outro subtropical. A cidade de São Paulo, vítima da poluição, é iluminada por uma luz difusa e o sol tem a cor amarelada e o céu cinza. Já em Araraquara, cidade do interior do estado de São Paulo a luz é transparente e o céu é azul.
A luz do sol no Brasil tem várias nuanças, e a luz tropical, em seu estado natural, pode ser bela ou feia esteticamente falando. Como já vimos anteriormente, a luz tropical não é inclinada, portanto não é modeladora, nem produz tons agradáveis de pele. Ela é vertical e produz sombras negras nos olhos. Uma sombra dura não realça a beleza, acentua os contornos. Mas defendo que esta é a nossa luz. As paisagens brasileiras, na maior parte do dia, apresentam alto contraste de luz e sombra; a padronização dessa luz com um artificial contraste, com um tipo de luminosidade e um padrão de cor poderá fazer dela uma luz sem identificação.
É importante pensar e refletir um pouco. A luz solar do território brasileiro e sua vasta gama de características possibilitam uma gama de criações estéticas fotográficas nas regiões acima ou abaixo do Trópico de Capricórnio.
O nordeste do Brasil é uma região tropical, e por ter um clima seco com menos vapor e em algumas regiões pouca poluição, o céu se apresenta com a cor azul bem escuro e um sol quase branco – estas são características marcantes desta região brasileira. A luz do norte e nordeste do interior é mais dura, de sombras contrastadas e negras, do que no litoral, onde as cores são mais vivas e brilhantes.
Em contrapartida, o sul e o sudeste brasileiros, regiões subtropicais, onde a luz solar é mais inclinada, onde o clima é úmido, o azul do céu se apresenta mais esbranquiçado e o sol amarelado.
As diferenças de luminosidade, as diferenças cromáticas e as diferenças de contraste acentuam as diferenças entre a luz brilhante, as sombras negras, a luz suave e sombras pouco marcadas, portanto manter a característica da luz em um determinado espaço constrói uma identificação com o lugar, reconhecimento e afetividade de espaços.
Se originalmente ela é assim, para fotografá-la deve-se respeitar suas características e não, dessa ou daquela maneira, lhe dar formas suaves, modificando sua feição e as feições de quem ou o quê ela ilumina.
Por outro lado, os tipos de solo, a umidade e a vegetação no espaço geográfico da região tropical possibilitam criar diferentes tipos de luz e contrastes. Exemplificando, no Maranhão, em Pernambuco e no Espírito Santo, estados inseridos na zona tropical, assim como a caatinga, os lençóis maranhenses e a ilha de Marajó possuem cores e contrastes particulares. Imaginemos um filme ser produzido numa fazenda marajoara e com a luz de um filme produzido no Rio Grande do Sul. Ou um filme ser realizado na Serra Gaúcha com luz contratada, ou ainda, um filme onde o espaço geográfico é a caatinga baiana com uma luz suave.
Essa qualidade cambiante da luz natural brasileira é um bom ponto de partida para uma breve análise da dramaturgia cinematográfica. Um espaço a ser tratado ou criado com suas características de luminosidade, cor e contraste. Por que não respeitar as diferenças modeladoras das geografias, identificadoras das paisagens? Acredito que se não procedemos dessa maneira, a fotografia passa a ser utilizada como suporte ilustrativo e não elemento participante como deve ser.
O cinema é uma arte cuja leitura é feita através de imagens, uma arte que se manifesta através de fotografia. Se o filme conta uma história em uma determinada região, a fotografia deve fazer parte da história, as luzes e as cores da região estão lá. Caso isso não aconteça, de que valeria ir a uma região fotografar os seus habitantes, os seus costumes, as suas danças, sua arquitetura? Não estaríamos descaracterizando a textura da luz? A luz que é também uma característica daquela região?
Fotografia é arte engajada, ela pode estar engajada na composição de luz, nas cores e nas texturas “globalizadas” de um filme comercial privilegiando o produto, ou deve ser engajada retratando a luz de uma obra cinematográfica sem distanciar e ou maquiar suas características regionais. Da mesma maneira as considerações sobre a textura do filme estão intimamente ligadas com o tipo de luz de cada região. Uma fotografia pode ser dura e contrastada e por isso ser bela e ser também personagem de um filme.
Uma seqüência de trabalhadores negros nas salinas de Mossoró, fotografada suavizando exageradamente a dureza característica de sua luz, é comprometedora para o cinema brasileiro, para a estética dos filmes brasileiros. As gravações deverão acontecer nas primeiras e últimas horas do dia, quando o sol está mais inclinado e suave. Imaginemos nas primeiras horas do dia os habitantes daquela região estão dormindo e nas últimas horas em suas casas descansando. Esta população vive, nasce e morre sob aquele sol.
A luz de filmes p&b brasileiros é referência para estudiosos do cinema, eles elogiam justamente a forma contrastada dessa luz, caracterizando além de uma região, uma geografia. O que parece estranho é sabermos que os filmes coloridos também podem trabalhar uma luz cheia de contrastes, com nítida demarcação de claros e escuros, podendo recriar a beleza luminosa da região e do drama, e isso raramente acontecer.
Por que não fazer com as diversas e cambiantes luzes brasileiras – a contrastada no Norte e Nordeste, a mais suave na região subtropical – uma fotografia participante? Bela ou não, deveríamos pensar conceitualmente propostas para o cinema nacional, para os produtores para os diretores e para os fotógrafos. Sobre a participação do fotógrafo, acho que ela deveria ir além. O fotógrafo de cinema, estando numa região de luz dura, poderia assumir a responsabilidade de captar a luz, de modelá-la, de contrastá-la sem lhe tirar a autenticidade.
O fotógrafo cinematográfico poderia ser mais participativo e, juntamente com o diretor dos filmes, compor uma fotografia levando em consideração a luz da região e do drama. O diretor de fotografia de um filme está naquela equipe para ajudar e colocar seus conhecimentos técnicos e sensibilidade artística a serviço do filme, para que as imagens resultem afinadas com estética que o filme suscita.
A luz pode ser captada em função de vários fatores: a temática, a dramaturgia, a estética juntas ou separadamente. É importante frisar que utilizando a luz original de um lugar podemos inventar e alcançar a luz desejada, pelo clima, pelo sentido da obra cinematográfica. Nenhuma luz é feia ou bonita se for bem realizada tecnicamente, há sim a boa luz que pensa o quadro como fazendo parte de um desejo de criar sentido, e uma má luz que pasteuriza que uniformiza todas as luzes dos filmes.
É tarefa de o diretor pedir cores e contrastes que não se distanciem do sentido que ele quer dar ao filme. E se a história é contada sob o sol tropical e personagens ao sol, por que tirar as características de sol tropical? De luz vertical durante a maior parte do dia criando as sombras negras? Por que maquiá-la exageradamente? Por que não manter suas características? A paisagem, a luz, as cores e os contrastes interagem, dialogam entre si e dão vida aos personagens.
Se os estudos da arquitetura, dos costumes, das tradições estão presentes no processo de realização de filmes, criando através das imagens cinematográficas lugares, regiões e dramas de nosso cotidiano, por que não estudar a luz do sol nesta região? Luz que é também imagem desse lugar e dessa gente a nascer e a viver sob essa luz?
É importante que cada filme feito neste país, iluminado com esse sol de várias luzes e variadas regiões, da mais contrastada à mais suave, seja fotografado o mais íntimo possível com as características de sua luminosidade, qual seja uma luz tropical, uma luz vertical, uma luz dura e contrastada.
Que a imagem de uma região árida seja mostrada ao mundo como contrastes e não como cores suaves de outras geografias e de outros povos. Que diretores e produtores não temam os contrastes, as sombras e os claros escuros, os detalhes de uma paisagem, de um corpo e de um rosto.
Waldemar Lima (1930-2012)
adorei
Isso já é de conhecimento público dede aquela época (anos 60).Discordo de algumas observações, como a que afirma que o céu do Sudeste não é azul (!!!) e que o sol é branco.No Sudeste e no Sul é onde ele é + azul !!! E essa “verdade” da proposta de que o fotógrafo deve sugerir para a direção e colocar seus conhecimentos tecnicos e artisticos àserviço do filme, é condição sine qua on, é o que,aliás, define a sua função!
Quem, de fato, revolucionou a fotografia mundial, não sómente do cinema brasileiro, foi Luiz Carlos Barreto em Vidas Secas – Nelson já observava seu trabalho de repórter fotográfico no O Cruzeiro, onde era evidente sua influência de Cartier Bresson, mas já um passo adiante – utilizando a luz em sua intensidade “realista”.Depois desse filme, nunca mais a fotografia foi a mesma no mundo.E quem deu continuidade a essa interpretação da luz brasileira foi Dib Lutfi – tb o nosso melhor cameraman.
Se compararmos a fotografia de Deus e o Diabo e a de Vidas Secas, se darão conta dessa diferença.