O engenho de Vladimir

Texto publicado originalmente no site e catálogo do Pirenópolis.doc – Festival de Documentário Brasileiro. Refere-se a uma curadoria que fiz para uma jornada Vladimir Carvalho, realizada ontem (sábado) no evento.

Filmagem de A Bolandeira 

Sintetizar a obra de Vladimir Carvalho em poucas horas de programação é tarefa impensável, daí não ser este o objetivo da singela homenagem que lhe presta a primeira edição do Pirenópolis.doc. Em vez disso, estamos propondo uma ilustração de alguns caminhos tomados pelo cineasta em sua lida de 55 anos com o documentário.

Nossa pequena mostra se inicia com um programa de curtas filmados no Estado de Goiás. O cálido encontro de Vladimir com Cora Coralina e demais personagens de Vila Boa de Goiaz já diz muito sobre a relação afetuosa que o diretor cedo estabeleceu com a “segunda pátria” goiana, eleita como uma espécie de simulacro do Nordeste que ele havia deixado para trás (embora nunca abandonado).

Como sempre em Vladimir, o afeto é temperado pela consciência histórica e social. Quilombo e Mutirão dão conta disso, na medida em que prosseguem na documentação de formas de vida e de cultura em processo de extinção. Enquanto Quilombo flagra práticas comunitárias ameaçadas pelo avanço da modernização, Mutirão expõe as contradições do consumo, pela classe média de Brasília, do artesanato produzido numa pequena localidade do interior de Goiás. Esses dois filmes deixam bem clara a maneira como Vladimir entrelaça os discursos etnográfico e político de um modo indissociável.

Filmagem de Mutirão ↑

A “tetralogia goiana” se completa com Paisagem Natural, sinfonia audiovisual sobre a natureza exuberante do Planalto Central e sua proximidade com o espaço urbano de Brasília. O curta é um dos episódios do longa Brasília, a Última Utopia e revela um Vladimir atento às minúcias da fauna e da flora. Mesmo aí, contudo, ele não deixou de inserir a marca da contradição na figura do caçador de onças, representante da predação. Incluímos nesse programa, ainda, Zum Zum – Com os Pés no Futuro, o único videoclipe do diretor, um ensaio narrativo meio mítico rodado nos Pireneus goianos com o músico Manduka (1952-2004).

Os dois longas-metragens selecionados representam o vínculo profundo que Vladimir Carvalho mantém tanto com a terra-mãe nordestina quanto com a adotiva Brasília. Barra 68 – Sem Perder a Ternura é uma rara peça de historiografia autenticamente cinematográfica, uma vez que sua evocação dos trágicos acontecimentos de 1968 na UnB depende fundamentalmente da emoção dos entrevistados diante da câmera e das cenas de arquivo. Uma entrevista até então inédita de Darcy Ribeiro e um registro em 16mm feito a quente por Hermano Penna vieram à luz para ajudar a recontar as origens da UnB, o sonho de instalar um centro de inteligência independente no coração do país e sua violenta interrupção pela ditadura civil-militar em 68.

Barra 68 exemplifica cabalmente o método de Vladimir: escavar a memória e abrir janelas para deixar entrar a realidade. Para isso, ele encara – e às vezes enfrenta – seus entrevistados de frente ou, quando é o caso, não escamoteia sua sincera cumplicidade e admiração. No corpo-a-corpo com os materiais de arquivo, é um amante apaixonado e curioso sobre cada mistério ou reentrância, disposto sempre a encontrar os sentidos camuflados na voracidade do tempo.

Junto com Barra 68 exibiremos o curta Perseghini, dirigido em parceria com Sergio Moriconi. Trata-se da retomada de um personagem de Brasília Segundo Feldman, o ex-operário e sindicalista Luiz Perseghini, que reconta episódios de drama e luta da sua já então longa trajetória de vida. Uma figura de traços quixotescos, apresentado aqui como um herói popular trágico.

O Nordeste desembarca de mala e cuia em O Engenho de Zé Lins, filme em que a biografia do escritor, em primeiro plano, deixa sutilmente uma filigrana da biografia do cineasta. A palavra engenho tem aqui um duplo significado. É o engenho de açúcar paraibano, visto como lugar de origem da personalidade de José Lins do Rêgo; e também sinônimo para o talento com que o escritor engendrou vida e invenção em sua obra. Mas o título ressoa ainda para além de tudo isso. Nele se vê um amálgama do cineasta e seu personagem. Ali está também o engenho de Vladimir.

O filme demonstra como o realizador não se prende a dispositivos nem coleiras metodológicas. Ele investe em pequenas encenações, depoimentos cativantes, um dramático reencontro com Sávio Rolim, ator do clássico Menino de Engenho, de Walter Lima Jr., e materiais de arquivo usados com parcimônia e editados com precisão de relojoeiro.

Em complemento a essa sessão, temos o curta A Bolandeira, o segundo de sua carreira, que institui uma pequena tradição na obra de Vladimir: a busca recorrente da paisagem do engenho, da rudimentar bolandeira e de um sentimento fundador que jamais deixou de nortear sua caminhada.

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