Depois de ver TÁXI TEERÃ, continuo com minhas desconfianças a respeito da real situação de Jafar Panahi. Para um cineasta proibido de filmar até 2030 e que mesmo assim já fez dois filmes exibidos no mundo inteiro, sair num carro filmando clandestinamente pelas ruas da cidade, numa produção articulada com atores dispostos em vários pontos, me parece um tanto improvável. O controle sobre suas atividades não teria recrudescido depois das transgressões anteriores? Bem, deixando as especulações de lado, quero crer que esse é o melhor dos “não-filmes” realizados por ele desde a interdição.
Primeiro, por se filiar à nobre linhagem iraniana dos filmes que se colocam a meio caminho entre a ficção e o documentário, explorando a dobra e a reflexividade entre os dois registros. Usando um dispositivo de filmagem semelhante ao de Kiarostami em “Ten”, Panahi interpreta – se essa for a palavra adequada – um taxista reconhecido por vários personagens-passageiros como sendo o próprio cineasta. Entre eles, um vendedor de DVDs censurados (incluindo provavelmente os do próprio Panahi) e a sobrinha real do diretor, atriz-mirim magnífica, que está aprendendo na escola como fazer um filme “exibível” pelos padrões oficiais.
Depois, pela habilidade com que os diálogos travados dentro e ao redor do carro refletem a alma iraniana, aí compreendidos os preconceitos, superstições, noções de ética pessoal, questões de gênero, etc. Pelas frestas das duas câmeras instaladas dentro do táxi, mais a câmera particular da menina, entrevemos e entreouvimos questões como a criminalidade, as execuções exemplares, o contrabando, a infância desassistida e as perseguições políticas que aprisionam profissionais da cultura e do Direito. O mundo ideal almejado pela sharia não cabe na realidade. A última sequência reserva uma surpresa, um golpe de dramaturgia para situar o clima de vigilância que transforma as ruas numa prisão, como diz a advogada de direitos humanos Nasrin Sotoudeh no papel dela mesma.
Panahi pode não ser detido por mais esse filme-transgressão, mas deveria ser pelo menos multado por dirigir mexendo em câmeras e falando ao celular. Benéfico para a sociedade iraniana, o cara, no entanto, é um péssimo exemplo no trânsito.
Não é difícil fazer um filme sobre Malala Yousafzai. A personagem estava pronta, com todos os lances dramáticos adequados: uma menina destemida se opõe a uma ditadura fundamentalista, sofre um atentado quase fatal, recupera-se milagrosamente, torna-se ativista internacional pelo acesso das mulheres à educação em países obscurantistas e ganha o Prêmio Nobel da Paz. Difícil era contar essa história sem cair na elegia nem na monumentalização da heroína. Foi o que Davis Guggenheim (”Uma Verdade Inconveniente”) esteve perto de conseguir em MALALA.
Através de um roteiro primoroso, incorporando animação, sucinto material de arquivo e muitos flagrantes de Malala na intimidade da família, o documentário articula as várias fases do passado da menina com sua ação em diversas partes do mundo e um retrato de sua cidade natal paquistanesa sob o jugo dos talibãs. Em paralelo a toda coragem e articulação, Malala tem preservada no filme sua imagem de garota comum e tímida, que admite gostar de astros de Hollywood e jogadores galãs, precisa melhorar as notas na escola e exibe “O Alquimista” como seu livro “preferido de todos”. Essa distância entre a face pública e o rosto privado de Malala dá o tom do perfil criado por Guggenheim. Contrabalança, de certa forma, a tendência da mídia em ver nela uma espécie de santa. Apenas os textos autobiográficos e reflexões, ditos por ela e seu pai em off, é que evidenciam um aspecto por demais “construído” em termos de tom e ritmo.
Quem quase rouba o protagonismo do filme é o pai de Malala, um poeta, fundador de escola no Paquistão e ativista anti-talibã. É a Ziauddin Yousafzai que se refere o título original do filme, “He Named Me Malala”, em claro contraste com o título do livro dela, “I am Malala”. Principal inspirador da filha – e, dizem, ghost writer de seus pronunciamentos –, o pai deu-lhe o nome de uma lendária guerreira afegã. Estaria assim predestinando-a simbolicamente. Mas tanto Malala quanto Davis Guggenheim parecem empenhados em negar a responsabilidade de Ziauddin pelos rumos de sua vida e os sofrimentos infligidos pela bala talibã em sua cabeça. O filme se ocupa dos dois como uma unidade indivisível.
AUSÊNCIA, de Chico Teixeira, se alinha a um estilo de crônica familiar praticado na Europa, sobretudo pelos irmãos Dardenne, ou na Argentina por Carlos Sorin. Isso significa economia de recursos, concentração dramática, naturalismo minucioso e recusa do espetacular. Durante pouco mais de 80 minutos, convivemos com o adolescente Serginho (Matheus Fagundes) e sua busca por laços de afeto. A separação dos pais o deixa responsável pelo irmão menor e pela mãe alcoólatra. Ele trabalha numa feira livre com o tio e se apega como pode a uma protonamorada, um amigo semimudo e um professor (Irandhir Santos) que o acolhe em sua casa, um tanto alarmado com a carência do garoto.
A certo ponto, senti falta de um plot mais substancioso para preencher as lacunas da crônica, mas logo em seguida percebi que o filme não se ressente dessa falta. O roteiro trabalha com sutilezas, cenas que nos desafiam a completar com a imaginação e uma habilidosa construção da veracidade dos personagens. A gente acredita que aquela família existe, assim como aquelas relações um tanto ambíguas que nos enchem de férteis perguntas. Para esse efeito de realidade contribuem não só o trabalho preciso dos atores, com destaque para o talento natural de Matheus Fagundes, como também a experiência de Chico Teixeira em documentários. Um bonito filme que, em sua essencialidade, emociona quase sem que a gente perceba.
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