Há duas forças que se complementam mas também se opõem em FOGO NO MAR. De um lado, as histórias dramáticas e trágicas dos barcos superlotados de refugiados que chegam (quando chegam) à ilha de Lampedusa, no sul da Itália. O filme testemunha os chamados desesperados de embarcações indo a pique, documenta alguns resgates – inclusive de enfermos e mortos –, observa os procedimentos de acolhida, ouve relatos e canções dos imigrados sobre a dura travessia, assim como as reflexões do legista encarregado de fazer as autópsias. Trata-se de uma imersão singular, muito além da cobertura jornalística de todo dia, nesse quadro que tanto se agravou nos últimos anos.
Mas “Fuoco Ammare” é também um retrato da ilha, cobrindo aspectos que não se relacionam diretamente com os novos navios negreiros. Conduzido pelo carismático menino Samuele na tradição dos filmes de Robert Flaherty, e costurado pela figura do radialista que conecta os vários interesses do local, esse perfil de Lampedusa tem seu lado lírico, lúdico, de pura inocência. Samuele quer ser um homem do mar, um pescador como o pai, mas para isso precisa treinar as vísceras para não vomitar no barco, estudar inglês e curar um “olho preguiçoso” que compromete sua pontaria.
Gianfranco Rosi lança mão de uma estrutura multiplot, que compreende ainda um mergulhador dedicado a recolher objetos de barcos afundados. Como fizera em “Sacro Gra”, a meu ver com resultado muito inferior, Rosi monta células documentais para criar uma representação de determinado lugar. O formato corre o risco de gerar dispersão e superficialidade. No caso de FOGO NO MAR, funcionou de maneira magnífica. Revelou um recanto do mundo onde a poesia da Itália profunda convive com o horror da condição contemporânea mundial. O choque e a interação dessas duas forças é que tornam o filme uma obra especial.
P.S. Convém registrar o fato, creio que inédito, de um documentarista ganhar o prêmio máximo de dois festivais classe A como Veneza (“Sacro Gra”) e Berlim (FOGO NO MAR). Update: Ely Azeredo me lembra que “O Mundo Silencioso”, de Jacques Cousteau e Louis Malle, venceu Cannes e o Oscar da categoria em 1956/57.
Não podia haver dias mais adequados, politica e meteorologicamente falando, para Neville d’Almeida estrear A FRENTE FRIA QUE A CHUVA TRAZ. É seu retorno ao front depois de 18 anos sem filmar um longa. De certa forma, é uma retomada da temática do seu polêmico “Rio Babilônia” na medida em que aborda a variada corrupção da burguesia carioca. Lá como aqui, Neville tenta se equilibrar entre a denúncia e a fruição do barato. Os meninos e meninas da Zona Sul que alugam uma laje do Vidigal para fazer festas, ficar mais perto dos pontos de droga e brincar de povão – contratando, por exemplo, um cantor sertanejo de sucesso (Michel Melamed, co-autor da adaptação) – são personagens talhados para soar ao mesmo tempo repulsivos e atraentes, estúpidos e corrosivos. Tem algo de muito ambíguo no moralismo de Neville.
Vejo as intenções críticas do filme em três vertentes: as relações de desdém e humilhação dos convivas com o negro dono da laje e o segurança; o travamento do sexo, do qual muito se fala pelos cotovelos mas nada se faz com as genitálias; e a personagem Amsterdã (Bruna Linzmeyer), uma “penetra” de poucos recursos e vida legitimamente bandida, que tem a função de verbalizar a impostura do grupo. O que afeta o potencial crítico do filme é a insistência em reproduzir as conversas e chistes idiotas dos playboys e “cachorras” a ponto de causar uma indigestão cerebral. Em contrapartida, falta o salto dramatúrgico que poderia botar o rei a nu. O episódio do quase-estupro na subida da favela é muito fraco para tal, além de sofrer da encenação chucra característica de Neville. Em grande medida, essas deficiências devem vir da peça original de Mario Bortolotto (que faz o papel do segurança), mas há de se levar em conta as restrições à adptação que o dramaturgo deixa transparecer nessa entrevista: http://bit.ly/1WendvR
Tecnicamente, o filme se resolve bem no cenário quase único da laje, com alguns problemas de captação de som direto. A fotografia diurna é superexposta e cheia de entradas de luz que a mim pareceram mais defeitos do que efeitos. Já a foto noturna se sai bem melhor, assim como a trilha sonora propositadamente vulgar. No entanto, para botar o dedo na cara da vulgaridade e da cafajestice, o nosso Larry Clark deveria tomar uma distância maior das duas coisas. De tão perto, o dedo na cara pode se confundir com um beijo.
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