CARVANA
Vendo CARVANA, a gente percebe certas dualidades contidas na persona do ator e diretor Hugo Carvana (1937-2014). O malandro irreverente e meio subversivo que ele encarnou no cinema se alternava com uma face oposta: a do agente da lei e da ordem, da figura repressora – sempre minada, porém, pelo veneno da sátira. Vê-se também como o ator expansivo e ultracarioca convivia com o cara terno, movido pelo combustível das amizades.
Esse autorretrato urdido em parceria com a família e a diretora Lulu Corrêa, sua assistente entre 1996 e 2013, reconta a trajetória de Carvana desde a infância na Tijuca (“ninguém sai impune da carga de energia de morar perto de cinco cinemas”) até as últimas comédias dirigidas por ele. No caminho tem as chanchadas, o Teatro de Arena, o Cinema Novo, o exílio por conta da militância da mulher, Marta Alencar, e a diarreia nervosa no primeiro dia de filmagem como diretor. “Quando o (fotógrafo) José Medeiros me perguntou onde botava a câmera, eu diparei para o banheiro”, relembra.
CARVANA nos transporta para um outro tempo, quando o cinema brasileiro era menos sério, o Rio de Janeiro era mais gentil e os figurinos e os carros, mais coloridos. Hugo encarnou o boa praça para quem as filmagens eram sempre uma festa, uma diversão e um exercício de camaradagem. A técnica e o intelectualismo eram alvos de boas piadas, muito embora ele tenha trabalhado com diretores altamente técnicos como Ruy Guerra e profundamente intelectuais como Glauber Rocha. Quando partiu para a carreira de diretor, porém, o que importava era a felicidade de filmar. Suas histórias sempre tinham uma vasta galeria de personagens onde coubessem os muitos amigos que o acompanhavam de filme para filme.
Afora um curto áudio de Glauber, é só Carvana quem fala em CARVANA. Entre os depoimentos de várias épocas, é curioso como os mais antigos soam mais formais, enquanto os mais recentes transpiram uma visão bem-humorada e poética do seu ofício. Uma coleção de making ofs e trechos de filmes remontam uma saga bastante representativa do cinema brasileiro entre as décadas de 1950 e 2010.
Pode-se talvez cobrar um pouco mais de petulância na construção da narrativa para combinar com o espírito do personagem. Afora pequenos desvios, o filme se apega a uma evolução cronológica bastante convencional. De qualquer forma, é um passeio saboroso pelo percurso de um grande artista e um mergulho na alegria de fazer cinema sem os rigores da indústria.
Foi muito bom ter assistido o filme ontem na abertura do É Tudo Verdade. Um bálsamo para a alma do público que lotou as duas sessões do MAM. Humor inteligente mesmo quando parece naif ou quando sacaneia cerebrações no set de filmagem. E algumas cenas antológicas.
Esse filme parece transbordar alegria, legado que homenageia Carvana. Colega de UFF da diretora, quero assistir!